Que Educação para a Era Pós-Covid-19?

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Este texto reune as ideias que apresentei em 8 de Maio de 2020 na semana virtual do Departamento de Ciência e Tecnologia da Universidade Portucalense, onde procurei apontar algumas mudanças chave a imprimir à educação em Portugal na era pós-Covid-19. Nele abordo a autonomia das escolas, a sua futura dimensão online, a apropriação cultural do telemóvel para a educação e o papel da televisão como elemento chave de uma desejável educação não escolar.

1. A autonomia das escolas

Antes desta pandemia, o relatório TALIS 2018, publicado em 2020, colocava a autonomia dos professores portugueses na posição mais baixa de todos países da OCDE. Apesar dessa falta de autonomia, um mês depois da transição forçada para o espaço online, as aulas das escolas portuguesas, praticamente desligadas do Ministério da Educação e entregues à iniciativa dos professores, funcionavam acima de todas as expectativas. 

Infelizmente, muitos alunos não tinham computadores em casa nem acesso à Internet e os servidores da maioria das escolas eram antiquados e vergavam sob a carga das transferências. Mesmo assim, os professores não baixaram os braços e ao fim de alguns dias o tráfego escolar online tinha atingido níveis nunca vistos. Entretanto, professores, escolas, pais, autarquias e algumas empresas desdobravam-se em iniciativas para levarem PCs, tabletes e conectividade aos alunos isolados, que os professores tentavam incorporar no movimento.

E no país vizinho, o que terá acontecido? Em Espanha, segundo afirmava Andreas Schleicher, diretor de educação da OCDE numa entrevista ao El País, os esforços que o governo investiu na transição para a distância esbarraram frontalmente contra o desinteresse da maioria dos professores. Desinteresse esse agravado pela falta de tradição de colaboração e partilha de soluções pedagógicas entre os professores, um indicador onde a Espanha pontua muito abaixo da média dos países da OCDE. 

Em Portugal, do lado de cá da fronteira, as redes sociais fervilhavam de colaboração, com os professores a convergirem e colaborarem num conjunto restrito de grupos online, alguns dos quais adquiriram em poucos dias dezenas de milhares de membros.

Como se explica este prodígio português? O que aconteceu foi que, ao reduzir a pesada linha de comando que ligava o Ministério da Educação às escolas, a pandemia devolveu aos professores uma iniciativa que há muito lhes tinha sido retirada e libertou a sua criatividade e talento para projetos pedagógicos de escola desobrigados de estreitas diretrizes vindas “de cima”. 

A moral desta experiência é que seria uma tragédia para a educação em Portugal se o espantoso capital de iniciativa e energia dos professores, que este período de emergência revelou, não fosse posto de imediato ao serviço de uma nova visão da autonomia das escolas em Portugal.

A primeira evidência que este período de pandemia revelou para a educação em Portugal foi, assim, a da necessidade de uma autonomia inteiramente nova para as escolas portuguesas.

2. Uma dimensão online para as escolas

As escolas nacionais, tal como as escolas de quase todo o mundo, não estavam preparadas para a súbita transição para a distância. Compreende-se, por isso, que tenham tido grande dificuldade em adaptar-se.

Não se compreenderia, no entanto, se agora que se prevêem novos surtos e se antecipam novas pandemias e catástrofes climáticas, as instituições continuassem a não fazer nada e, quando as catástrofes surgissem, alegassem que não estavam a contar com elas. Errar é humano, mas cometer duas vezes o mesmo erro é incompetência. 

Justifica-se assim que as escolas, tirando partido da experiência de terreno que estão a desenvolver neste momento, comecem a construir desde já o seu prolongamento online permanente, que possa ser posto à carga plena se, e quando, vier a ser necessário.

Será de esperar, assim, que cada escola, ou cada agrupamento, passe a ter uma infraestrutura tecnológica de gestão de aprendizagem (LMS), uma seleção de tecnologias regularmente atualizadas, um repositório crescente de conteúdos, um acervo crescente de práticas, e toda uma cultura de partilha entre professores, entre professores, alunos e encarregados de educação, e entre escola e sociedade. 

Daqui resulta a segunda evidência para a educação revelada por este período de pandemia: a necessidade de constituir e explorar, em cada escola ou agrupamento, uma infraestrutura tecnológica sustentável e um padrão de práticas regulares que prolonguem a escola, de forma permanente, para o espaço online.

Este prolongamento seria o embrião de uma unidade de ligação da escola com a sua comunidade interna e externa, de reforço da sua imagem institucional e, acima de tudo, de educação online e de b-learning, a usar sempre que desejável.

No âmbito dessa presença online, seria importante que a escola começasse a desenvolver as competências dos seus docentes para ensinarem online, não em situações improvisadas, de emergência, mas de forma sustentada e com a qualidade e profissionalismo que o mundo de hoje exige e a competência pedagógica dos educadores experimentados coloca ao seu alcance. Um bom professor do século XXI deverá, idealmente, ser um bom professor tanto presencialmente como online.

3. As tecnologias na educação 

Existem duas tradições da utilização das tecnologias nas escolas em Portugal: a dos computadores pessoais e a dos equipamentos configuráveis. A tradição dos computadores pessoais remonta ao início dos anos oitenta e privilegia o uso dos computadores na perspectiva do utilizador. À medida que as tecnologias evoluíram, esta tradição estendeu-se para a exploração online e nos últimos anos começou a integrar também o recurso a tabletes.

A tradição dos equipamentos configuráveis, mais recente, baseia-se no recurso a computadores em circuito impresso, ou micro-controladores, como o Arduino, Raspberry Pi, BeagleBone, Nanode e outros. Estes equipamentos são a base de riquíssimos contextos de aprendizagem baseada em projetos, de criação de soluções informáticas e robóticas e de aprendizagem da programação. 

O telemóvel manteve-se conspicuamente afastado desta realidade. No ano 2000, começaram a surgir telemóveis nas mãos dos alunos, e a sua presença nas escolas tornou-os de imediato em elementos de perturbação e conflito. Em muitas escolas, passaram, mesmo, a ser proibidos. Com a emergência dos smartphones, surgiram alguns projetos interessantes em escolas portuguesas e a UNESCO publicou, em 2013, um estudo que incentivava o seu uso na educação, mas as limitações de que ainda padeciam não estimularam a sua adopção para utilizações pedagógicas regulares.

Acontece que, nos últimos dois anos, as características técnicas e os preços dos smartphones transformaram radicalmente o seu potencial como instrumentos de aprendizagem para os tempos que vivemos. É hoje possível adquirir por cerca de 200 €, ainda sem desconto de quantidade, smartphones com câmaras de alta qualidade, ecrãs de 6.3”, 6 GB de RAM e memória de 128 a 256 GB. Por outro lado, a sua utilização pela faixa etária escolar tornou-se quase total. Segundo a Marktest, citada pela revista Marketeer em agosto de 2018, a utilização de smartphones superava os 99% junto dos jovens portugueses entre os 10 e os 24 anos.

Um smartphone serve, hoje, para tudo. É livro, dicionário, enciclopédia, biblioteca, câmara fotográfica, laboratório fotográfico, câmara de vídeo, estúdio de cinema, sala de aula, oficina de artes gráficas, digitalizador de texto e imagem, redação de jornal, sala de reuniões, museu, calculadora científica e gráfica, ambiente de cálculo matemático, sistema de gestão de bases de dados, processador de texto, folha de cálculo, instrumento de comunicação, equipamento de medida, simulador, coletor de dados biológicos, identificador de plantas e animais, instrumento de diagnóstico de doenças, mapa, atlas, bússola, instrumento de navegação … A lista é interminável!

Uma criança de catorze anos que viajasse para um planeta desconhecido levando no bolso um telemóvel destes, e que o usasse nas funções acima mencionadas, seria vista como um prodígio. Uma criança dos nossos dias, com um telemóvel destes na mão, é, de facto, um prodígio … se souber utilizá-lo. Mas saberá utilizá-lo em todas essas funções? Se sabe, quem a ensinou? Certamente que não foi a escola! 

Por outro lado, se não foi a escola, haverá crianças mais favorecidas que se transformam em prodígios porque alguém as ensinou, e haverá crianças menos favorecidas que não serão prodígios porque a escola não as ensinou. A simples existência de telemóveis no mundo de hoje, gostemos deles, ou não, pode criar desigualdades gritantes se a escola lhes voltar as costas.

Outro aspeto a ter em conta é o da cibersegurança. Não caberá à escola desenvolver as competências essenciais das crianças para esta dimensão chave do mundo de hoje? Se sim, fará algum sentido a escola ensinar as práticas do uso do telemóvel sem o integrar plenamente na sua atividade? Se não integrar o telemóvel nas suas práticas, como é que a escola ensinará cibersegurança? Fazendo palestras e projeções de slides?

O que se torna hoje evidente é que o telemóvel se transformou no mais poderoso instrumento pessoal de ligação entre o ser humano e o mundo. Por isso, ou a escola inscreve o telemóvel nas suas práticas, ou corre o risco de, como escola, reduzir a sua relevância para o mundo. Por muito que nos custe reconhecê-lo, o acesso ao mundo de hoje está cada vez mais no telemóvel e cada vez menos nas práticas da aula tradicional.

E os computadores? Ao contrário do que aconteceria com o telemóvel, os computadores são usados nas escolas como meros instrumentos. Não promovem, nem poderiam promover, uma interiorização cultural porque não se inscrevem em práticas sociais regulares, intensivas e permanentes. Ora, a História da Humanidade mostra-nos que os seres humanos se mantiveram primitivos enquanto se limitaram a explorar as tecnologias como instrumentos, sem as consolidarem em torno de práticas socioculturais plenas, como as que, só mais tarde, conduziram à descoberta da agricultura e das indústrias.

O único instrumento susceptível de apropriação cultural plena, porque é pessoal e se integra na vivência do dia-a-dia, onde quer que estejamos, é o telemóvel. Em boa verdade, o telemóvel é o único instrumento pessoal universal para a literacia digital, quer seja usado por crianças, por adultos ou por pessoas idosas.

Aliás, não deixa de ser irónico pensar que muitas das dificuldades que vivemos nestes tempos de transição forçada para o espaço online teriam sido evitadas se as crianças das nossas escolas já fossem os tais prodígios de telemóvel no bolso. Mesmo que alguns dos seus equipamentos fossem limitados, e as condições de acesso problemáticas, uma compra maciça de smartphones e de contas de dados teria sido muito mais fácil e económica do que a aquisição caótica de computadores pessoais cujas manutenções virão a ser problemáticas.

Daqui resulta mais uma evidência para a educação, tornada clara por este período de pandemia: a importância de encetar um percurso gradual de apropriação cultural do telemóvel para a prática pedagógica.

Esta apropriação não será fácil nem rápida. Envolve um projeto muito ambicioso de renovação dos currículos e das práticas escolares em torno do uso do telemóvel. Em alguns domínios do saber, como a Matemática, há muito trabalho já feito, no âmbito de soluções poderosas, como as do Wolfram Alpha. Noutros domínios, há algum trabalho internacional valioso, que apenas tem de ser transposto para português. Mas noutros domínios haverá que começar do zero, uma tarefa difícil, mas também aliciante porque abre perspectivas para inovar a nível internacional. 

4. Brevemente numa televisão perto de si

As sociologias da inovação dizem-nos que em sistemas sociais complexos onde a diversidade dos atores cresce e a interação entre atores se intensifica, a tendência para emergirem fenómenos de inovação tende a aumentar. O lançamento da iniciativa #EstudoEmCasa, uma variação da extinta Telescola, parece configurar um destes fenómenos. Acolhida de forma globalmente positiva, não apenas pelos alunos a quem se destinava, mas também pelos pais e avós, o modelo do #EstudoEmCasa pode vir a ser um contributo relevante para uma educação que transcenda o meio escolar.

Num país onde a televisão penetra por todo o lado, mas onde existem grandes desequilíbrios no acesso à educação por vários sectores da sociedade, o recurso a um espaço público de educação televisiva de qualidade poderia contribuir de forma transformadora para a melhoria da qualidade de vida de várias populações. Desde logo, para preencher um espaço deixado vazio no que se refere à literacia da leitura e da escrita, sobretudo para os mais idosos, mas também para auxiliar a superar as carências crescentes de literacia digital, num país e num mundo onde a incapacidade para usar meios digitais se tornou gravemente debilitante. 

É chocante que um cidadão seja hoje legalmente obrigado a recorrer a serviços online, para os quais não tem alternativa, sem que o Estado tenha assumido, alguma vez, a responsabilidade de o educar para o efeito. 

Daqui resulta mais evidência para a educação, que este período de pandemia tornou clara. A importância de manter um serviço pedagógico televisivo de alta qualidade para as populações desejosas de aprenderem, mas que não têm alternativas.

Em resumo, são estes os desafios que se colocam à educação em Portugal a partir do próximo mês de setembro:

  1. Reforçar radicalmente a autonomia nas escolas.
  2. Assegurar que cada escola ou agrupamento constitui uma infraestrutura tecnológica sustentável e um padrão de práticas que a prolongue de forma permanente para o espaço online.
  3. Desenvolver de forma gradual a competência dos professores para a educação online.
  4. Iniciar um percurso gradual de apropriação cultural do telemóvel para a prática pedagógica.
  5. Manter um serviço público, pedagógico, televisivo de alta qualidade para as populações que pretendam aprender mas não têm alternativas e assegurar, desde já, através desse serviço, um programa de alfabetização e de literacia digital.

(Foto do autor)

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Incógnitas da Educação a Distância de Emergência

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Só colocando-nos na posição dos professores que ensinam online pela primeira vez conseguiremos compreender a confusão e insegurança que agora os assalta. Tal como eu dizia há dias, um professor é sempre um professor, quer use, quer não use as tecnologias: ninguém sabe melhor do que um professor o que é ensinar. No entanto, o universo onde o professor hoje se aventura é muito distinto do universo que lhe é familiar. Por isso procurarei realçar algumas fontes de insegurança que mais marcam as diferenças entre o ensino presencial e o ensino online. Tentarei fazê-lo com vagar e fugindo à tentação de esquematizar e resumir.

Simultaneidade

Na aula presencial típica, o professor fala e coloca desafios; o aluno ouve e reage aos desafios. Tudo acontece em simultâneo. As reações dos alunos, a sua linguagem corporal, o brilho dos seus olhos são elementos chave para o professor ajustar o ritmo da aula. A sua própria ligação afectiva à aula nasce em larga medida dessa proximidade física e emocional. Na educação online, pelo contrário, o professor e o aluno não precisam de estar online ao mesmo tempo. Quanto mais autónomos e maduros forem os alunos, mais prescindível se torna a simultaneidade. Por isso se fala de atividades síncronas e assíncronas.

Quando se retira ao professor tradicional a simultaneidade é como se se lhes retirasse o oxigénio de que necessita para respirar. Por isso, nos primeiros tempos, a primeira tábua de salvação a que se agarra é o software de videoconferência — Zoom, WebEx ou Skype — que lhe permite reconstruir a simultaneidade. Ora, com veremos, muito do potencial da educação a distância está em prescindir da simultaneidade, deixando que cada aluno progrida ao seu próprio ritmo.

Tempos

Os tempos do professor tradicional são os tempos do toque horário, um padrão herdado de há duzentos anos, quando a escola de massas foi concebida à imagem das empresas industriais de então. Os tempos da aprendizagem online são hoje os tempos da cognição humana, que a psicologia dos últimos cem anos e as neurociências das últimas décadas demostraram serem radicalmente distintos dos tempos industrias do passado.

Para se fazer ideia do absurdo de alguns dos tempos praticados em muitas das experiências de ensino a distância de emergência que estão a decorrer, vale a pena observar um quadro com os tempos de aprendizagem recomendados por uma vasta equipa de peritos de educação a quem o Illinois Sate Board of Education encomendou um conjunto de recomendações para a aprendizagem a distância neste período (Figura 1). Nesta tabela, os níveis mais baixos correspondem ao nosso pré-escolar e o mais elevado corresponde ao nosso 12º ano.

Figura 1 — Tempos máximos e mínimos de aprendizagem e durações
recomendadas par a atenção sustentada dos alunos

Controlo

Por força da simultaneidade, o controlo das aulas tradicionais está fortemente centrado nos professores. Se assim não fosse, as aulas rapidamente se tornariam caóticas e ninguém se entenderia. O principal problema deste modelo é que privilegia em excesso a explicação do professor sobre a autonomia do aluno, com consequências fortemente negativas, que discuto em pormenor noutros locais (por exemplo, em A Educação num Mundo Digital ou em A Pedagogia dos Contextos de Aprendizagem).  

Na educação a distância é possível flexibilizar e distribuir o controlo da aprendizagem, evoluindo para modelos pedagógicos de colaboração, avaliação pelos pares, co-aprendizagem e, mesmo, co-evolução. Este desenvolvimento reveste-se de importância chave porque incentiva a autonomia, uma das competências mais em falta nos jovens dos nossos dias. Em boa verdade, se os jovens de hoje possuíssem uma autonomia cognitiva e emocional à altura dos tempos que correm, e que os mercados de trabalho tanto reclamam (ver Que Competências para as Novas Gerações?), a transição para a educação a distância de emergência que agora estamos a viver seria muito mais fácil.

Ritmos

Os ritmos da aula tradicional são muito condicionados pelas exigências de simultaneidade e pela inerente necessidade de disciplina. No espaço online, as oportunidades são inesgotáveis. Podem dividir-se os alunos em “salas” virtuais, onde trabalham em grupos, juntando-os só depois no espaço coletivo, para debate e síntese. Podem definir-se projetos em que cada aluno faz a sua parte, segundo os princípios da aprendizagem baseada em projetos (project-based learning), reunindo-os depois para construirem e afinarem o todo e avaliarem e documentarem o projeto resultante.

Podemos, inclusivamente, inverter os ritmos de trabalho, pondo os alunos a aprenderem sozinhos o tema a estudar, recorrendo a vídeos ou a materiais que lhes facultamos previamente, reunindo-os só depois numa aula plenária onde exercitam e consolidam os saberes adquiridos. Esta modalidade invertida de aprendizagem (flipped learning), tem vindo a ganhar larga aceitação em vários países e níveis de ensino. No caso do ensino superior, por exemplo, chegam a organizar-se disciplinas inteiras segundo o modelo invertido (flipped courses): na primeira metade da disciplina, os alunos seguem autonomamente um curso online, que até pode ser de outra instituição; na segunda metade, realizam projetos que aplicam e consolidam os saberes adquiridos autonomamente na primeira parte. 

Tecnologias

Um dos efeitos da adopção forçada das tecnologias por quem não contava fazê-lo no imediato é que suscita incertezas quanto à intensidade com que deverá ser feita essa adopção. Na dúvida, e porque a insegurança pode ser grande, os professores que as adoptam tendem a convencer-se de que deverão ser usadas para tudo. Ora a máxima de uma utilização saudável das tecnologias na educação é que deverão ser usadas o menos possível: sem dúvida, quando forem indispensáveis, e são indispensáveis muitas vezes, mas não mais do que isso. Por alguma razão os magnatas mundiais das tecnologias se opõem a que os seus filhos as usem. 

Acresce que estudos recentes renovam as preocupações com os perigos para a saúde das radiações electromagnéticas. Daí resulta que a educação online deveria ser pautada pela moderação na presença à frente de ecrãs e teclados. Idealmente, os alunos deveriam dispensar as tecnologias tanto quanto possível e usá-las predominantemente como (poderosos) instrumentos locais, para fazer pesquisas, para enviar e receber trabalhos e para comunicar rapidamente com professores e colegas. A presença, durante horas, frente a um ecrã, em videoconferência, deveria ser evitada a todo o custo.

Empatia

Dizem que os grandes professores, tal como os grandes lideres, têm fartas reservas de empatia. Nas aulas tradicionais, a ligação emocional entre professor e alunos é espontânea. Quase sem se aperceber, o professor percorre a sala com os olhos e vê, em décimos de segundo, tal como o fotógrafo experimentado, tudo aquilo que ninguém vê: o brilho de um olhar, a dúvida, a perplexidade, a desistência.

No espaço online nada disso acontece, e essa é uma das maiores tragédias da migração para a educação a distância, porque é aí que a empatia faz mais falta. A ansiedade, a indiferença, a insegurança, a deserção, estão muitas vezes lá, e ninguém as vê. Como o amigo que tanto nos anima num momento difícil, mesmo sem dizer uma palavra, o professor tem de aspirar a essa magia: “estar lá!”, não em corpo, não em ecrã, mas em espírito. Às vezes, basta uma mensagem de duas linhas, uma palavra de incentivo, um telefonema inesperado a dizer “gostei muito do teu trabalho!”…

(Foto do autor)

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Educação a Distância de Emergência – 6 Sugestões

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Sem regularidade, mas porque recebo muitas newsletters cujas assinaturas fui afinando ao longo dos anos, irei partilhando aqui sugestões que vou recebendo e que me pareçam coincidentes com a visão que tenho de uma educação a distância de emergência. As seis sugestões que hoje apresento são inspiradas nas da diretora de uma escola básica de Hong Kong que as descreveu para a Education Week. Esta professora, que nunca tinha ensinado a distância, revela-nos o que aprendeu, juntamente com toda a sua escola, sobre como reinventar uma escola para estas desafiantes condições.

Não repitam o dia típico da escola presencial. Uma solução que parece resultar é dividir o dia em quatro blocos, com os primeiros 15 a 20 minutos dedicados a uma videoconferência ao vivo entre professores e alunos. A estrutura do dia, radicalmente distinta da da escola presencial, deveria procurar alternar entre tempo estruturado e tempo auto-dirigido pelos alunos.

Criem muitos tempos sem écran. Não se esqueçam de que o ecrã é comprovadamente nocivo para a saúde e prejudica o desenvolvimento da linguagem, e que muitas crianças têm difícil acesso à Internet e partilham os dispositivos com a família. Ponham em prática alguns descansos de um dia inteiro, para renovar as energias, e prevejam tempos para as crianças lerem, completarem as tarefas longe do écran e brincarem.

Não sacrifiquem o desenvolvimento profissional. Mantenham, por videoconferência, sessões colaborativas regulares entre os professores, para que possam trocar ideias e experiências e partilhar materiais, recursos e competências (“eu ajudo-te nisto, tu ajudas-me naquilo”). Procurem criar um sentido de pertença a um projeto inovador coletivo. Não se esqueçam de que estão todos a construir, enquanto navegam, a jangada que vai levar-nos, a todos nós, a bom porto.

Procurem construir um escola online coerente. No princípio, cada professor, assustado com as suas próprias limitações, sentir-se-á impelido a “salvar-se por si ”. Aos poucos, no entanto, procurem construir e aperfeiçoar, por aproximações sucessivas, para toda a escola, um conjunto de protocolos comuns simples que sejam fáceis de compreender por toda a gente (professores, alunos, pais e funcionários). Essa coerência poderá ser criada em torno da plataforma de gestão da aprendizagem, se houver uma. Quanto mais coerente for a ação da escola, mais facilitada será a vida dos pais que têm vários filhos na mesma escola.

Acreditem que nada é impossível. Não se inibam de “pensar fora da caixa” e tentar soluções que nunca foram tentadas, como dividir os alunos em pequenas salas de debate, ou desafiar alunos a ajudarem online ou por telefone os colegas com mais dificuldades, ou criar pequenos grupos para alunos que necessitam de ajuda extra em tópicos específicos. 

Vão devagar, para bem de todos. Não é possível ensinar ao ritmo do ensino presencial. Quando a videoconferência e o estudo em casa deixarem de ser novidade, haverá uma quebra de entusiasmo. Alguns alunos que eram extrovertidos na sala de aula vão apagar-se online, e irão surgindo muitas outras surpresas. Tudo isso é normal. Procurem desenvolver sensibilidade para diagnosticar a compreensão e acompanhamento dos alunos, e aceitem repetir uma ou outra aula, com novos incentivos, se for caso disso. Como numa guerra de guerrilha, há que avançar, recuar, reagrupar, avançar outra vez. E há que renovar sempre, com perseverança, o entusiasmo da escola, dos alunos e dos pais.

(Foto do autor)



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Quadratura do Círculo

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Atrasei, a contragosto, a abordagem das questões práticas da transição para o online na esperança de que fossem levantadas entretanto duas indeterminações de monta por parte do Ministério da Educação: a da avaliação final do ano e a do papel a ser desempenhado pela telescola. A verdade é que não seria boa ideia decidir-se como se vai ensinar a distância sem decidir primeiro o que se vai ensinar a distância. Na falta de resposta para estas indeterminações, a minha posição do momento quanto à avaliação do ano letivo é que há duas situações distintas.

Uma situação é a dos alunos para quem existe a necessidade imperiosa de uma classificação, com destaque para os que vão candidatar-se ao ensino superior. Para esses, a aprendizagem deveria acabar já, e o resto do ano letivo seria consagrado à consolidação dos conhecimentos adquiridos até à interrupção das aulas, combinada com a avaliação desses mesmos conhecimentos, da qual resultaria a classificação final.

As questões de equidade ficariam, assim, satisfatoriamente resolvidas, na medida em que a avaliação apenas incidiria nos saberes adquiridos até à interrupção das aulas. Uma vantagem adicional seria que as instituições de ensino superior saberiam de antemão, para todos os alunos, quais as partes dos programas que não tinham sido cumpridas, e estariam em melhores condições para planearem as suas ações de recuperação.

O modelo de educação a distância, estratégias pedagógicas, plataformas, aplicações e equipamentos a adoptar para este caso concentrar-se-iam em exclusivo na consolidação/revisão e respetiva avaliação. A teleescola poderia ter um papel muito importante no reforço desta componente.

A outra situação, quase oposta quanto aos objetivos da ação docente e ao modelo de educação a distância a adoptar, é a dos restantes alunos. Para esses, por razões de equidade, não é possível fazer a avaliação do ano letivo. Havia a possibilidade de fazer para estes o mesmo que para os alunos que vão candidatar-se ao ensino superior, mas essa opção só teria sentido se houvesse uma necessidade imperiosa de os avaliar.

Não sendo esse o caso, afigura-se mais pertinente passar para primeiro plano a aprendizagem e para segundo plano a avaliação. Idealmente, deixar-se-ia cair por completo a avaliação final do ano letivo, concentrando a ação pedagógica na consolidação dos conhecimentos já adquiridos e na aprendizagem dos novos conhecimentos previstos nos programas. A única avaliação a reter seria a avaliação formativa implícita em qualquer processo educativo genuíno.

A eliminação da avaliação final do ano lectivo aliviava muita da ansiedade dos pais. Para os pais que não podem oferecer aos filhos um computador pessoal nem acesso de qualidade à Internet, é hoje motivo de justificada angústia a perspectiva de os filhos poderem perder o ano ou obterem “uma nota má”, só por causa dessa falta. Com esta solução, grande parte das angústias dos pais ficariam dissipadas.

Por todas estas razões, a minha resposta à questão de o que se vai ensinar a distância, neste segundo caso, é que se irão consolidar conhecimentos e ensinar novos saberes, numa ação a distância completamente desacoplada da avaliação do ano letivo, que não deveria ser feita.

Estas minhas reflexões têm implícitas duas convicções que, por serem demasiado controversas, terei de explicar com pormenor em próximas partilhas. Uma é que, neste segundo caso, se deveria aproveitar a ocasião para começar a renovar o conceito de escola, o comportamento dos alunos e a relação cultural dos jovens com a tecnologia. A outra é que não me parece que o computador pessoal seja a solução ideal para a educação a distância de emergência. Mas lá chegaremos!

(A foto é do autor)

Nota – Este texto foi publicado originalmente no blog da Comunidade Aberta e Inclusiva de Apoio à Transição para a Educação Online em 8 de Abril de 2020.

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O Caminho Faz-se a Andar

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Caminhante, são os teus rastos
o caminho, e nada mais;
Caminhante, não há caminho,
o caminho faz-se a andar”

— Antonio Machado, Campos de Castilla

Há dois tipos de estratégia para resolver problemas de grande complexidade como os que agora se levantam com a forçada transição das escolas para o espaço online: as estratégias lineares e as estratégias em espiral. As estratégias lineares reunem todos dados possíveis, analisam-nos à luz de modelos teóricos, concebem um plano de ataque minucioso, e só então passam à intervenção. As estratégias em espiral, ou de aproximações sucessivas, começam a intervir logo que dispõem de alguns dados relevantes e avançam em ciclos sucessivos de recolha de mais dados e intervenção, até o problema ficar resolvido.

As lineares aplicam-se nas situações onde o grau de incerteza é baixo e a realidade social é previsível, mas são inúteis quando tal não é o caso. As em espiral aplicam-se nas situações onde o grau de incerteza é elevado e a realidade social é complexa, mas são pouco úteis quando não é esse o caso. As lineares são habitualmente usadas nas ciências e nas tecnologias. As em espiral, que condensam a essência do design thinking, estão mais ligadas às epistemologias da prática e ao design. As lineares são robustas e rigorosas. As em espiral, como se expõem ao imprevisto, tendem a ser mais criativas e inovadoras. A abordagem em espiral existe há muito em Educação, onde se destaca, por exemplo, o modelo do Currículo em Espiral proposto por Jerome Bruner.

Nos departamentos universitários familiarizados com a educação a distância, foi possível fazer a transição online recorrendo a estratégias lineares: levantaram-se rapidamente os requisitos e, partindo deles, planeou-se uma intervenção online razoavelmente sustentável. Nos departamentos universitários e nas escolas do ensino básico a secundário não familiarizadas com a educação a distância, o recurso linear é impossível: torna-se imprescindível recorrer a estratégias em espiral.

Esta circunstância não é necessariamente negativa. De facto, ao debilitar a pesada linha de comando que ligava o Ministério da Educação às escolas, a pandemia devolveu aos professores uma iniciativa que há muito lhes tinha sido retirada. Passaram, assim, a poder exercer a sua criatividade, talento e paixão sem terem de se sujeitar a minuciosas diretrizes administrativas vindas “de cima”, que os condicionava e perturbava o seu bom desempenho pedagógico. Deixaram de ser meros executores de ordens, para passarem a ser construtores — designers — dos seus projetos pedagógicos e de escola.

É esse design que está agora nas mãos dos professores e das escolas, transformadas em comunidades de prática e de intervenção pedagógica, autorizadas e incentivadas pelas circunstâncias a construirem o seu próprio caminho. Quererão os professores e as escolas construir esse caminho, que, como no poema de Antonio Machado, se faz andando? No meu próximo texto abordarei alguns dos desafios desse percurso.

(A foto é do autor)

Nota – Este texto foi publicado originalmente no blog da Comunidade Aberta e Inclusiva de Apoio à Transição para a Educação Online em 7 de Abril de 2020.

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O Caminho Nunca Dantes Percorrido

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Dois caminhos divergiam num bosque, e eu…
escolhi o menos percorrido.
E isso fez toda a diferença.”

—Robert Frost, The Road Not Taken

As escolas de todo o mundo estão a percorrer um caminho nunca dantes percorrido. Após séculos da lógica presencial, que definiu a sua própria essência como escolas, viram-se subitamente esvaziadas e projetadas para a distância, sem qualquer preparação prévia para a transformação. De um dia para o outro, professores, alunos e pais tornaram-se náufragos de um navio que navegava a todo o vapor e se deteve bruscamente. Estão agora empenhados em construir a jangada que os levará a bom porto. A sua grande dificuldade é que a jangada terá de ser construída ao mesmo tempo que navegam.

Este é um caminho nunca explorado. Ninguém sabe como percorrê-lo. Uma coisa é educar a distância segundo teorias e práticas que têm vindo a consolidar-se ao longo de décadas. Outra coisa, bem distinta, é mudar subitamente do presencial para o remoto, com mais de metade do ano já cumprida. É como começar um jogo com regras bem conhecidas e interrompê-lo subitamente para começar, sem intervalo, um jogo cujas regras se desconhecem. Ainda por cima, pretende-se chegar ao fim do ano com resultados apurados.

Que fazer? O objetivo das minhas contribuições neste espaço é tentar responder a esta questão. Para o efeito, procurarei conciliar o que aprendi ao longo dos anos que dediquei à educação e às tecnologias com o que aprendi, também ao longo de muitos anos, sobre como resolver problemas sociotécnicos em contextos de incerteza — os chamados problemas perversos, ou “wicked problems”.

Procurarei fazê-lo através de intervenções curtas e, se possível, frequentes. O momento não é a meu ver para grandes teorias ou para extensas listas de referências. Lá chegaremos, um dia, se necessário, mas o que interessa agora são sugestões práticas que possam ser acionadas de imediato. Abordá-las-ei a partir da minha próxima intervenção.

Um ponto prévio. Um professor é sempre um professor, com ou sem tecnologias. A excelência da educação não está no uso das tecnologias. Está na alma para a pedagogia, construída ao longo de uma vida, está na comunicação aberta, na entrega, na empatia, na paixão pelos alunos, na nobre missão de criar cidadãos completos. As tecnologias poderão, ou não, reforçar esse papel, mas o que define um professor não é o talento para as tecnologias: é a pedagogia. Um professor que nada saiba de tecnologias tem tudo o que é necessário para, passo-a-passo, com o auxílio de colegas e alunos, começar a incorporar as tecnologias no seu arsenal pedagógico.

O que isto significa é que atravessamos um raro momento de valorização. Uma oportunidade única para os professores examinarem as suas próprias práticas à luz dos desafios que a distância lhes coloca e tornarem-se ainda melhores professores. É nesse percurso que espero poder acompanhá-los.

(A foto é do autor)

Nota – Este texto foi publicado originalmente no blog da Comunidade Aberta e Inclusiva de Apoio à Transição para a Educação Online em 26 de Março de 2020.

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Melhoria das Aprendizagens de Matemática. Um Contributo para a Discussão Pública do Relatório Produzido pelo Grupo de Trabalho de Matemática

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Em fins de Dezembro de 2018, a Secretaria de Estado da Educação nomeou um grupo de trabalho para “proceder à análise do fenómeno do insucesso e à elaboração de um conjunto de recomendações relativas ao ensino, aprendizagem e avaliação da disciplina de Matemática”. O documento resultante, datado de 30 de junho de 2019, esteve em consulta pública até 31 de outubro de 2019. O preâmbulo do despacho, a constituição da comissão e o relatório produzido sugerem que algumas das partes interessadas relevantes não foram auscultadas, com destaque para o sector das engenharias, cuja dependência relativamente às competências matemáticas dos estudantes é muito elevada. Se tivermos em conta que a falta de engenheiros, um problema grave do desenvolvimento tecnológico e económico do país, é motivada em larga medida pela falta de candidatos com preparação matemática adequada, afigura-se de importância vital superar essa lacuna. O presente documento procura contribuir nesse sentido, divulgando as reflexões de alguém que dedicou várias décadas ao estudo da história e da filosofia da engenharia e à experimentação e reflexão sobre a educação em engenharia. 

Matemática formal versus matemática instrumental

Há duas variantes da matemática muito distintas, quase opostas, que se completam e constroem mutuamente. A primeira é a matemática formal e abstrata que se ensina nas escolas. A segunda é a matemática instrumental e aplicada com a qual se constrói o mundo. A primeira basta-se a si própria e é de uma grande beleza. A segunda existe para servir as outras áreas do saber e é de uma eficácia fulminante. A primeira é o domínio de excelência dos matemáticos que cultivam a matemática pela matemática. A segunda é um corpo de competências cada vez mais necessário em todos as atividades humanas, e já não apenas nas ciências duras. A primeira traduz-se por disciplinas de matemática. A segunda funda-se nas disciplinas de matemática mas evolui a partir delas, pela prática interdisciplinar, para a construção de competências matemáticas

O interesse pelas competências como complementos dos saberes disciplinares acentuou-se a partir da publicação do Relatório Faure, da UNESCO (1972), que augurava “um novo ser humano para um novo mundo” e acentuava a importância de desenvolver nos jovens competências que enquadrassem os saberes cognitivos que a escola lhes oferecia. O crescimento da complexidade e incerteza do mundo em que vivemos, motivado em larga medida pelas tecnologias, deu razão a essa linha de intervenção e levou a que entidades com destacadas responsabilidades na educação a nível mundial, como a UNESCO, OCDE, Fórum Económico Mundial, Comissão Europeia, Partnership for 21st Century Skills, insistam hoje enfaticamente na educação, não apenas para os saberes, mas também para as competências. O próprio Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, do nosso Ministério da Educação, se inscreve nesse movimento.

Matemática das disciplinas versus matemática das competências

Os organismos internacionais que hoje reclamam a formação de grande quantidade de profissionais competentes em matemática não reclamam apenas conhecimentos disciplinares de matemática — reclamam, sobretudo, competências matemáticas. Reclamam-nas porque as matemáticas estão hoje na base de tudo quanto são algoritmos, e o mundo é hoje gerido por algoritmos, mais do que por pessoas. Reclamam-nas porque as matemáticas estão hoje na base da análise maciça de dados, e grande parte das grandes decisões do presente resultam da análise maciça de dados. Reclamam-nas porque as competências matemáticas, na sua natureza transversal de competências, se fundem e confundem com as de computação. Reclamam-nas porque o casamento entre matemática e computação é o instrumento mais poderoso que a Humanidade alguma vez inventou. Reclamam-nas porque essa poderosa combinação invade hoje todos os setores de atividade, incluindo as humanidades (humanidades digitais, jornalismo digital, media digitais).

Quando os organismos internacionais falam de STEM (Science, Technology, Engineering, and Mathematics), não falam, na maior parte dos casos, de um agregado de quatro áreas disjuntas, destinadas a ser ensinadas e aprendidas separadamente. Falam de uma só área (STEM) que combina transversalmente os saberes das quatro áreas componentes. Falam de competências transversais de STEM, que se interpenetram e reforçam mutuamente. O grande desafio do STEM, quando encarado nesta perspetiva, está na identificação de abordagens curriculares e pedagógicas novas, interdisciplinares, capazes de explorar de forma inteligente esta interpenetração. Uma vez consolidadas estas abordagens, uma parte significativa da aprendizagem da matemática, que hoje se exercita na mera aplicação da matemática à matemática, passará a poder ser acionada e consolidada em aplicações das ciências, tecnologias e engenharia. Poderemos, então, começar a falar de competências matemáticas.

Infelizmente, das duas matemáticas que aqui distingo – abstrata e instrumental – só a primeira é ensinada nas escolas. Poder-se-á dizer que o seu ensino é suportado com exercícios que facilitam a sua compreensão, mas a ausência de práticas multidisciplinares integradoras que promovam a sua apropriação cultural em contextos multidisciplinares tornam-na limitada e ineficaz na construção de competências matemáticas. Tal como a água, cujas propriedades líquidas não existem nos seus gases componentes, hidrogénio e oxigénio, e apenas emergem da combinação das componentes em condições específicas, também as competências matemáticas só emergem da combinação da matemática com outras áreas na resolução de problemas em contextos complexos, interdisciplinares e, cada vez mais, de natureza social. A consolidação e amadurecimento das competências matemáticas não resultam apenas da compreensão e memorização de conhecimentos, mas também das intensas transformações neuronais que emergem do envolvimento em vivências práticas complexas e interdisciplinares.

Matemática da análise versus matemática do projeto

Quando perguntaram a Theodore von Kármán, matemático, físico e engenheiro aeronáutico, responsável por muitas das inovações aeronáuticas dos anos cinquenta, que diferenças existiam entre ciências e engenharias, ele respondeu: “as ciências explicam o que existe, as engenharias criam o que nunca existiu”. Esta distinção tem vindo a esbater-se ao longo dos anos, à medida que as práticas das ciências se aproximam das das engenharias. O próprio conceito de “projeto”, que dantes apenas fazia sentido nas engenharias, é hoje usado nas ciências e em todos os domínios do saber. Apesar dessa aproximação, a distinção entre percursos epistemológicos de explicação e de construção, de análise e de síntese, mantém-se imutável. A matemática que se ensina nas nossas escolas é a matemática da análise. A síntese, o projeto, a construção do mundo recorrendo à matemática estão, infelizmente, afastadas das nossas escolas!  

Embora os conceitos de estilos de aprendizagem e inteligências múltiplas suscitem justificadas reservas, é incontestável que as preferências cognitivas e culturais de cada um determinam motivações e percursos de aprendizagem distintos. Há quem aprenda predominantemente pela via analítica e em torno de abstrações, mas há quem, pelo contrário, necessite de recorrer à intuição e a prática para aprender. Esta distinção salta aos olhos de quem ensina conjuntamente futuros matemáticos e engenheiros. A verdade é que nas sociedades contextuais em que vivemos a capacidade de aprendizagem analítica está em decadência. Basta ver uma criança usar um dispositivo tecnológico para percebermos que não está a seguir nenhum percurso analítico. Em boa verdade, o próprio sincretismo da aprendizagem humana, que leva uma criança de três anos a falar com grande correção gramatical sem nunca ter dominado os percursos analíticos da gramática, deveria alertar-nos para os riscos de insistirmos em que uma criança aprenda unicamente pela via analítica. 

Sem dúvida que é essencial ensiná-la a pensar analiticamente e de forma abstrata, sobretudo porque cada vez sabe menos fazê-lo. A matemática, pelo seu caráter eminentemente analítico e abstrato, pode desempenhar um papel chave nessa aprendizagem. No entanto, quando se opta por complicar o acesso à matemática a quem tem dificuldade em seguir percursos analíticos e abstratos (ver exemplo), perdem-se para o insucesso milhares de jovens que teriam aprendido a matemática com facilidade e prazer se tivessem seguido vias mais pragmáticas. Quando, e só quando, esses jovens tivessem atingido níveis de desenvoltura e confiança mais elevados, poderiam, então, se fosse caso disso, progredir para formulações mais abstratas. Há cem anos, a aprendizagem do ski de neve recorria aos skis comuns, com taxas de insucesso muito elevadas. Um dia, experimentou-se iniciar a aprendizagem com skis mais curtos, antes de progredir para skis maiores, e o sucesso foi enorme. Em poucos anos, o ski deixou de ser reservado a quem tivesse nascido para esquiar à primeira tentativa e ficou ao alcance de toda a gente. Hoje em dia, há campeões de ski que nunca se teriam equilibrado em cima de um par de skis se não tivessem aprendido com skis curtos. Que bom que era que todos os jovens pudessem, como esses esquiadores, aprender matemática com prazer e sem se sentirem derrotados pelas suas dificuldades iniciais!

Sugestões

No essencial, procurei realçar a importância de ter em conta que a aprendizagem da matemática no ensino obrigatório não se destina a produzir apenas futuros matemáticos. Destina-se, acima de tudo, a produzir estudantes capazes de prosseguirem estudos nas múltiplas áreas onde as matemáticas são usadas, não tanto na sua vertente abstrata e formal, mas sobretudo como instrumentos essenciais para a formulação e resolução de problemas. Sugeri, por isso, a necessidade de imprimir à aprendizagem da matemática no ensino obrigatório uma dinâmica de transição do abstrato para o instrumental, das disciplinas para as competências, das culturas do formalismo para as culturas do projeto. 

Para levar a bom termo esse objetivo, afiguram-se relevantes algumas sugestões:

  • No curto prazo, sugiro um esforço de pragmatização da aprendizagem da matemática através da reforma das didáticas e das pedagogias e do simultâneo ajustamento dos programas. Nada obsta a que, para estimular o gosto pela abstração, se estabeleçam objetivos pedagógicos opcionais adicionais.
  • No médio prazo, sugiro um alargamento da reflexão e das práticas do ensino da matemática no sentido de as exercitar em torno de projetos que sejam, não do âmbito da matemática, mas da combinação da matemática com disciplinas afins – ciências, tecnologias, engenharias. Numa primeira fase, essa transição poderia acontecer nos tempos letivos dedicados à autonomia e flexibilidade curricular. Seria ideal constituir um repositório crescente de pistas para os professores desenvolverem com gosto nos seus projetos. Esse repositório poderia ser desenvolvido, pelo menos parcialmente, no âmbito de trabalhos de mestrado e doutoramento. 
  • Ao nível da formação inicial e contínua dos professores de matemática, sugiro o lançamento de programas de formação orientados para o desenvolvimento de uma cultura de projeto que contemple a criação, realização e gestão de projetos interdisciplinares e abertos.
  • No longo prazo, sugiro o lançamento de um projeto de investigação nacional orientado para a definição de uma área curricular de STEM capaz de articular as aprendizagens de ciências, tecnologias, engenharia e matemática. Idealmente, um tal projeto assentaria em parcerias duradouras entre unidades de investigação e comunidades escolares e seria conduzido no âmbito de projetos de investigação realizados por equipas mistas de investigadores e professores das escolas. Esses projetos ofereceriam alternativas contextuais à formação de professores (hoje confinadas quase exclusivamente a sessões em sala), proporcionando oportunidades para mestrados e doutoramentos “no terreno” e contextos autênticos para a progressão dos professores numa perspetiva de carreira.

Créditos – O exemplo reproduzido na figura é da autoria do Prof. Vítor Duarte Teodoro, da Universidade Nova de Lisboa.

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O Fim dos Livros

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Quando Portugal aderiu à Comissão Económica Europeia, em 1986, vi-me subitamente envolvido num turbilhão de reuniões, muitas das quais aconteciam em Bruxelas. Foi assim que ganhei o hábito de vaguear ao fim da tarde pelas estantes da FNAC do City 2, perto da Place Rogier, e de visitar, depois do jantar, um alfarrabista do Boulevard Adolphe Max, com quem às vezes ficava à conversa. A FNAC do City 2 tinha uma particularidade para mim preciosa. Para além dos livros em francês e flamengo, tinha também uma vasta seleção de livros em inglês, cobrindo todas as temáticas — das novelas às ciências ou à gestão, passando pela filosofia e as humanidades. Numa época em que não havia Internet para se saberem as últimas novidades, era um privilégio poder manter-me, desse modo, a par das novidades bibliográficas em francês e inglês. Os anos foram passando, neste agradável ritual das minhas estadias em Bruxelas, até que um dia resolvi mudar de hotel. O novo hotel era noutra zona da cidade, e os meus passeios de fim de tarde, a pé, até à FNAC do City 2 acabaram. Passados uns cinco anos, uma súbita saudade levou-me de novo à Place Rogier e subi, como dantes, a escada rolante que me levava à FNAC. Foi então que fui assaltado por um agudo sentimento de angústia. Os livros tinham desaparecido! À minha frente, nas mesas e estantes, a perder de vista, só se viam caixas de jogos de vídeo, filmes, músicas, software. Era a vitória definitiva do multimedia! Felizmente, estava enganado: penetrando mais fundo na penumbra da livraria, encontrei os livros a que estava habituado, agora arrumados de outra forma. Mas o sentimento ficou. Nos nossos tempos, os jogos de vídeo, filmes, músicas e software estão na Internet, e já quase não se vendem em livrarias, mas como será um mundo onde a visão do fim dos livros de papel, que senti com tanta agudeza naqueles breves segundos, vier a tornar-se realidade?

Foto: Caos, António Dias de Figueiredo (2007).

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A Avaliação dos Professores Universitários

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A complexidade da avaliação de um professor universitário, tal como a da avaliação de um cientista, artista ou filósofo, torna inadequada qualquer apreciação meramente fundada sobre julgamentos de facto. Exige, acima de tudo, julgamentos de valor. Ludwig Wittgenstein, que publicou em vida um único livro, com apenas uma centena de páginas, é considerado por muitos especialistas como tendo um valor muito superior a Bertrand Russell, prémio Nobel, que publicou mais de três dezenas de extensas obras. Isto apesar de outros especialistas, com idêntica legitimidade, defenderem o contrário.

A avaliação de um professor universitário é um processo complexo, interpretativo, hermenêutico, subjetivo, cuja valia e rigor resultam de ser conduzido por um júri de vários professores cujas experiências e tradições académicas e pedagógicas são ricas, extensas e variadas. É um processo onde, como esclarecia Gadamer em Truth and Method 1, a compreensão segue um percurso de interpretação mediado por uma tradição que é distinta para cada uma das partes que julga.

Quando a avaliação decorre no contexto de um concurso, a importância do processo interpretativo é reforçada pelo carácter teleológico do provimento. Não se nomeia um professor apenas como prémio pelo seu desempenho passado (o que corresponderia à lógica, e às consequências, do Princípio de Peter), mas também por ser, numa perspectiva interpretativa, o mais adequado para o lugar. A fundamentação não pode, assim, assentar apenas em causas eficientes. Assenta também em causas finais. Não se nomeia apenas porque, mas também para, e isso obriga a cuidados interpretativos adicionais.

Favoreço, como muitos colegas em todo o mundo, o modelo proposto por Boyer2, que aponta quatro funções parcialmente sobrepostas como indispensáveis à avaliação de um professor universitário: os magistérios da descoberta, da integração, da aplicação e do ensino (ver figura). O magistério da descoberta é o que reflete a atividade de investigação. É entendido como a contribuição do professor, não só para o avanço universal do conhecimento, pela descoberta de novos saberes, mas também para o clima intelectual da universidade. São importantes, neste sentido, não apenas os resultados (artigos publicados), mas também a mobilização e entusiasmo que o professor é capaz de gerar em seu redor.

O magistério da descoberta resulta de uma mutação relativamente recente na tradição da Universidade como instituição milenária. De facto, só a partir das propostas de Wilhelm von Homboldt, fundador da Universidade de Berlim, no século XIX, a missão da Universidade começaria a ser entendida como centrada na produção de conhecimentos novos, dando destaque à investigação científica. Aliás, a propagação desse entendimento para fora da realidade universitária alemã só começaria a surgir nas universidades dos países mais desenvolvidos já no século XX. Esta mutação, de há apenas um século, tem vindo a prolongar-se, por sua vez, para novas mutações, agora assentes em modos de produção de conhecimento muito distintos dos que von Humboldt preconizava.

A investigação Humboldtiana, ou investigação de modo 1, agora tida por tradicional, era realizada quase exclusivamente nas universidades, situava-se em ramos disciplinares estanques e produzia saberes que precediam a sua aplicação prática. As novas formas de investigação, ou investigação de modo 2, produzem saberes de ponta, não especificamente nas universidades, mas no contexto da aplicação industrial, organizacional ou social, segundo lógicas interdisciplinares, com agendas de investigação determinadas pelos interesses partilhados de comunidades alargadas. Comunidades alargadas que transcendem as universidades para passarem a incluir empresas, outras organizações e governos3. Hoje, as duas lógicas prosseguem caminhos paralelos, igualmente legítimos, embora se observe uma forte deslocação dos financiamentos da primeira para a segunda.

É nesta conjuntura que a inovação tem vindo a afastar-se do modelo linear tradicional, que colocava a descoberta a montante do processo de produção científica, nas universidades, para surgir no seio de interações complexas e simultâneas dos múltiplos atores dos processos de inovação – universidades, indústrias, governos, organizações não governamentais4 – perante problemas concretos aos quais, colectivamente, pretendem dar solução.

É nesse sentido que várias universidades, das mais avançadas, reconhecendo que a produção de novos saberes surge na confrontação com desafios socioeconómicos concretos, começam a deslocar os seus objectivos de inovação científica da periferia das suas atividades para o próprio centro dos seus sistemas de valores5. Este fenómeno tem consequências sobre as opções que as universidades tomam em matéria de investigação científica, sobre as expectativas quanto ao desenvolvimento dos seus professores de carreira e sobre os julgamentos que fazem quanto aos projectos de investigação que esses professores integram e dirigem.

O magistério da integração acentua a capacidade do professor para dar sentido aos saberes isolados, colocando-os em perspectiva, estabelecendo conexões entre saberes e colocando as especialidades em contextos mais alargados. Assume, assim, uma função interdisciplinar, interpretativa e integrativa: interdisciplinar, porque dirigida para a construção e exploração de conexões entre saberes; interpretativa porque apostada na compreensão dessas conexões no contexto de padrões intelectuais enquadradores; integrativa, porque entendida como capaz de fazer convergir todos esses elementos em saberes e contextos coerentes e globais. É nesse sentido que se espera que o professor de carreira demonstre uma espessura intelectual e cultural que dê contexto, profundidade e sustentação à sua atividade científica, evitando transformar-se naquilo que Ortega y Gasset, na sua Missão da Universidade, descrevia como “um bárbaro que sabe muito de (apenas) uma coisa”6.

O magistério da aplicação reflete o que, partindo da tradição universitária alemã dos fins do século XIX e início do século XX, passou a designar-se por Zeitgeist, o “espírito do tempo”, os valores intelectuais e éticos que caracterizam uma época. No essencial, significa que a ação do professor universitário, pela ciência que constrói e pela aprendizagem que proporciona, deve servir os interesses da comunidade em que se inscreve. Esse sentido de serviço é infelizmente relegado para segundo plano por alguns universitários mais apostados em progredir rapidamente na carreira do que em reconhecer as obrigações que os vinculam, como cientistas e pedagogos, à comunidade a que pertencem.

O magistério do ensino pressupõe que o saber do professor só faz sentido quando se torna compreendido pelos outros. Por isso, o professor não pode encerrar-se no ciclo fechado da convivência científica com os seus pares, reservando para os alunos meras “transferências” de saberes, apresentadas mecanicamente em aulas teóricas e exercitadas mecanicamente em aulas práticas. Sabendo-se que existe uma distância gigantesca entre o que um professor ensina e o que o aluno aprende, o professor não pode deixar de tentar minimizar essa distância. Para que o magistério do ensino tenha sucesso, o professor tem de assegurar, pelo estudo dos processos de aprendizagem, pela reflexão e pela prática o permanente reforço da sua capacidade para ensinar.

É na convergência harmoniosa destas quatro dimensões, parcialmente coincidentes, que se reconhece a qualidade de um professor. Por isso a carreira de professor é tão exigente. Não é fácil ser um bom investigador, cujos saberes se projetam para o mundo, mas ser um bom professor obriga, não apenas a ser bom investigador, mas a ser muito mais do que isso.

Se o debate deste tema vier a revelar-se proveitoso, procurarei numa posterior reflexão trazer para a realidade da prática os princípios que acima enunciei, comentando, entre outros aspetos, o absurdo das grelhas usadas para avaliar professores universitários, as deficiências da articulação da carreira com o modelo de Bolonha e os desafios que uma sociedade cada vez mais conectada coloca ao exercício da carreira universitária.

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A Cidade Criativa: uma Janela de Oportunidade

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A propósito da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, anozero’17: Curar e Reparar.

A bienal anozero 2017 fechou ontem as suas portas. Se existiam dúvidas de que havia em Coimbra a paixão e o talento para transformar o impossível em possível, as dúvidas deixaram de existir. Curiosamente, a transformação ocorreu na parte da cidade onde consta que aconteceu o milagre das rosas. Que fazer agora? Dizia-nos Torga, um poeta de Coimbra, mas também do mundo, no seu poema Confiança, que “o que é bonito neste mundo, e anima, é que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura”.

A bienal e os seus artistas mostraram a Coimbra o que Coimbra poderia ser, se quisesse. E fizeram-no, não em abstrato, no campo das ideias ou das equações, mas com as mãos, sobre a matéria prima de um imenso edifício para o qual a cidade não tinha destino. Mostraram, num esboço carregado de sentidos, daqueles que só os artistas conseguem imaginar, que é possível curar e reparar grandes coisas. E mostraram que a cura e a reparação podem ser belas e encher a alma.

Que fazer agora? Vamos deixar fechar as portas do convento e esquecê-lo para sempre? Ou vamos aceitar o desafio, prosseguir a cura, repará-lo, restitui-lo à cidade e projetá-lo para o mundo? Seguindo a inspiração de Torga, que aventura vamos sonhar?

O meu sonho era ver o convento transformado numa Cidade Criativa, ou, se quiserem, numa incubadora de indústrias criativas. Um espaço onde artistas, músicos, escritores, atores, cineastas, designers, jornalistas de nova geração e também criadores das áreas tecnológicas se agrupassem e recombinassem, montassem as suas atividades e as tornassem visíveis, sustentáveis e únicas.

Está hoje provado que a criatividade é, acima de tudo, um fenómeno social. Gera-se criatividade onde já fervilha a criatividade. As cidades renascentistas são um bom exemplo. Como seria o mundo, hoje, se não tivessem existido as cidades renascentistas?

Porque não convidar criativos de todo o mundo para se juntarem aos nossos criativos na Cidade Criativa de Santa Clara-a-Nova, uma cidade renascentista do século XXI? Ainda por cima num país e numa urbe com tantos atrativos.

A imensidão do convento oferece espaço para instalar os criativos, com as suas oficinas, estúdios, lojas e negócios, espaço para organizar exposições, feiras e festivais e espaços para acolher renovadamente a Bienal anozero, num convento que renasceu com ela e graças a ela.

Claro que a Cidade Criativa teria de ter uma pequena infraestrutura de organização, gestão, estratégia, imagem e aconselhamento das suas unidades para a sustentabilidade e valorização da sua presença no mercado e no mundo, e esse seria mais um desafio lançado à criatividade coletiva.

Regressemos então ao poema de Torga, agora na sua inteireza: “O que é bonito neste mundo, e anima, é que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura e a doçura que se não prova se transfigura, noutra muito mais nova e muito mais pura”. Poderemos sonhar essa aventura?

 

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