O alvoroço com a urgência em transformar a escola para um mundo de inteligência artificial faz-me lembrar as palavras de Jean-François Marmontel na entrada sobre “crítica” da Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers” (1751-1772), há quase trezentos anos, numa época de grande euforia com a revolução industrial e o génio humano.
“O desejo de saber é muitas vezes infrutífero por excesso de atividade. A verdade quer que a procuremos, mas que esperemos por ela; que a precedamos, mas que não a ultrapassemos. Cabe ao crítico, como guia sensato, aconselhar o viajante a parar ao fim do dia, para que não se perca no escuro”
As transformações do nosso mundo vão ser grandes, provavelmente muito grandes, mas serão diferentes do que pensamos. A inovação é como uma árvore. Sabemos que vai crescer, mas não sabemos quantos ramos nascerão nem que frutos dará. Avancemos com empenho, mas com bom senso, porque temos pressa.
Todos os anos por esta altura escrevo uma lista das contribuições públicas que fiz ao longo do ano pela causa da Educação (para além das das redes sociais), uma espécie de ponto da situação para arrumar as ideias e me lembrar de por onde andei. Este ano, inclui nessa lista os endereços dos conteúdos que produzi, e decidi partilhá-la, para que os conteúdos possam ser consultados. A generalização da Inteligência Artificial Generativa, em fins de 2022, alinhou-se de forma perfeita com o meu interesse de longa data na interação entre tecnologias e educação e marcou de forma clara o meu 2023.
Ensino Superior: O que fazer depois do ChatGPT?
16.02.2023 – Webinar Instituto Politécnico de Beja https://youtu.be/kb9SEW1-1Sw
Que Futuro para a Universidade? 03.03.2023 – Palestra presencial
Tertúlia do Grémio de Instrução e Recreio da Pampilhosa
(O endereço Web será aqui colocado após revisão das notas usadas)
Renovar a Investigação em Educação
05.05.2023 – Artigo de revista Educação, Formação & Tecnologias, Vol. 11, nº 1, Educom https://bit.ly/47hRQbY
ChatGPT: o Bom, o Mau e o Falso
26.05.2023 – Artigo de revista digital Coimbra Coolectiva https://bit.ly/3NLs6Oq
A Pedagogia e o ChatGPT no Politécnico de Coimbra
30.05.2023 – Webinar e experiência pedagógica
Instituto Politécnico de Coimbra Um webinar que foi também uma experiência pedagógica. Com antecedência, desafiou-se a audiência a formular questões e convidou-se o orador a responder às questões, à queima roupa, sem saber o que iria ser-lhe perguntado. Foram recebidas cerca de 600 questões, vindas de cerca de 300 pessoas, e as organizadoras (Lúcia Simões Costa, Sofia Sá, Isabel Pedrosa e Verónica Vasconcelos) reduziram-nas a um número compatível com a duração prevista, de duas horas. Também se aceitaram questões da audiência, suscitadas pelo próprio debate, o que aumentou ainda mais a participação e a coesão do diálogo. https://youtu.be/dLhA0UrQhQQ
Inteligência Artificial: Ética e Inovação Pedagógica
06.06.2023 – Webinar
Academia FORGES (Forum da Gestão do Ensino Superior nos Países e Regiões de Língua Portuguesa) https://youtu.be/RVz0qWd0arQ
IA Generativa e Construção de Conhecimento
30.06.2023 – Apresentação presencial Evento “Processamento de Linguagem Natural – Tendências e aplicações práticas”, LIS/IPN, Instituto Pedro Nunes https://bit.ly/41KQaGO
Educating Engineers for Turbulent Times
06.07.2023 – Apresentação Online
5th International Conference of the Portuguese Society for Engineering Education (CISPEE), Guimarães, Universidade do Minho, 5-7 July 2023
Panel Discussion: Responsive and Sustainable Education Futures 08.09.2023 – Painel de discussão 8th European Conference on Technology Enhanced Learning (ECTEL 2023). Responsive and Sustainable Education Futures, Universidade de Aveiro, 4-8 Set 2023
Que Humanidades na Era da Inteligência Artificial Generativa?
21.09.2023 – Palestra presencial
Abertura das Aulas 2023/2024, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Pedagogias de Nova Geração na Engenharia Informática
27.09.2023 – Palestra presencial
Colégio de Engenharia Informática da Ordem dos Engenheiros, Coimbra
O que é a Inteligência Artificial? 28.11.2023 – Apresentação presencial Fórum Pedagógico do Núcleo de Estudantes de Psicologia, Ciências da Educação e Serviço Social da Associação Académica de Coimbra (NEPCESS/AAC)
Prós e Contras da Inteligência Artificial? 28.11.2023 – Painel de debate (moderação) Fórum Pedagógico do Núcleo de Estudantes de Psicologia, Ciências da Educação e Serviço Social da Associação Académica de Coimbra (NEPCESS/AAC)
Em Portugal não há grande tradição de campanhas de sensibilização cívica pela televisão e pelo cinema. Mesmo assim, fizeram-se em tempos algumas pequenas campanhas para a prevenção de fogos e a redução da mortalidade nas estradas. Curiosamente, os enredos escolhidos para essas campanhas eram invariavelmente humorísticos, como se para cativar a atenção de um público pouco cultivado fossem necessárias histórias leves e divertidas. Foi assim que assistimos a campanhas sobre florestas devastadas por fogos, e trágicos acidentes de automóvel, a serem recebidas pelo público com um sorriso bem-disposto, como se fossem algo de divertido. Sempre senti que as estratégias de sensibilização divertidas era um tiro no pé porque normalizavam a tragédia e diluíam as responsabilidades.
Lembrei-me destas dificuldades do discurso da sensibilização cívica a propósito do filme “Não Olhem para Cima” (“Don’t Look Up”), agora disponível na Netflix, uma parábola inteligente sobre a eminência do colapso da vida na Terra, onde a crise climática que hoje vivemos é metaforicamente substituída pela aproximação de um asteroide que se dirige para a Terra, algo em que ninguém acredita, a começar pelos políticos que poderiam evitar a catástrofe. Mesmo quando estes começam a convencer-se da autenticidade do fenómeno e se apercebem de que podem retirar dividendos políticos se tentarem um salvamento vistoso, acabam por retroceder, sob a pressão das grandes empresas, que os seduzem para os ganhos financeiros a extrair dos metais raros transportados pelo asteroide.
A designação “Não Olhem para Cima” é o apelo que os políticos inculcam nas mentes dos seus apoiantes, e que estes repetem fanaticamente, mesmo quando o rumo inexorável do asteroide em direção à Terra já é visível a olho nu e só quem não olhar para cima poderá acreditar que não vai acontecer.
A parábola do filme está bem explorada, os diálogos são inteligentes, a representação conta com um elenco de atores de luxo e a fotografia é excelente, mas a adoção do tom humorístico, com Meryl Streep em registo Mama Mia, é um tiro no pé que, tal como nas campanhas de sensibilização portuguesas, destrói a intenção pedagógica.
A meu ver, “Don’t Look Up” compara-se desfavoravelmente com “On the Beach”, um romance de Nevil Shute, convertido para o cinema em 1959 por Stanley Kramer, que descreve um futuro apocalíptico onde a poluição radioativa resultante de um violento conflito nuclear destrói todos os seres humanos do hemisfério norte e se espalha inexoravelmente para sul. A ação do filme, que conta com alguns dos melhores atores da época, decorre na Austrália e retrata como os últimos sobreviventes do planeta aguardaram o momento da sua própria extinção. Nas cenas finais do filme, já sem sobreviventes, vemos as ruas desertas de Melbourne varridas pelo vento e numa das praças da cidade um dístico a agitar uma patética mensagem de esperança: “Ainda há tempo … Irmão”.
Do ponto de vista histórico, há quem defenda que “On the Beach” teve um papel decisivo na sensibilização da opinião pública e dos decisores políticos mundiais para os riscos de uma guerra nuclear, que chegou a estar eminente. Não estou convencido de que o tom bem-disposto de “Don’t Look Up” tenha idêntico impacto na contenção da crise climática!
A decadência da leitura profunda gerou a decadência da reflexão crítica. O cidadão dos nossos dias não domina o pensamento crítico porque não aprendeu a construí-lo, autonomamente, pela leitura
Paulo Freire, um dos mais influentes pensadores da educação do século XX, autor da Pedagogia do Oprimido, encarava a educação como parte de um projeto político de libertação da dependência e da opressão. Segundo ele, a educação deve desenvolver nos cidadãos competências de autorreflexão, autonomia e intervenção crítica que os habilita a construírem os seus próprios destinos e o bem coletivo. Para Freire, a aprendizagem não é um simples meio de preparar cidadãos para empregos, mas um instrumento que os liberta das limitações da sua condição e os habilita a conquistarem, individual e coletivamente, o poder para construirem o seu destino e intervirem no mundo.
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Não surpreende, por isso, que um dos seus livros mais populares, A Importância do Ato de Ler, se dedique ao papel-chave da leitura no contexto desse projeto de libertação. Para Freire, o ato de ler “não se esgota na descodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas antecipa-se e alonga-se na inteligência do mundo” e “o contexto gera a compreensão do texto, mas a leitura do texto enriquece a compreensão do contexto”. Para se compreender o mundo e intervir na sua transformação é necessário ler sobre ele em permanência. Caso contrário, fica-se reduzido a um estatuto de dependência e eventual opressão, que será tanto maior quanto maior for a ignorância.
Infelizmente, as práticas pedagógicas dos nossos dias, ainda prisioneiras do modelo magistral medieval, contribuem para desincentivar a leitura. Ao assentarem na transposição dos livros de estudo para a palavra oral do professor, libertam os estudantes do esforço de reflexão autónoma e crítica a que a leitura os obrigaria, criando-lhes a convicção de que não necessitam de pensar para aprenderem. Este regresso a um passado onde o discurso da oralidade dominava o discurso da leitura agravou-se com a banalização do discurso oral e visual dos multimédia, generalizando uma preguiça de pensar que exclui cada vez mais a leitura crítica e reflexiva.
Cada época tem os seus modos de leitura. Na Antiguidade, lia-se em voz alta e estranhava-se a leitura silenciosa. Nos tempos do Iluminismo, censurava-se a leitura criativa e elogiava-se a leitura passiva. No século XVIII, não se via com bons olhos que as mulheres lessem em privado, para que não escapassem pela leitura às restrições moralistas da época. Nos nossos tempos, todos os modos de leitura são permitidos e cada um pratica os que quer. Por outro lado, observamos, com ânimo, que alguns dos jovens que comunicam superficialmente entre amigos, conseguem, quando querem, embrenhar-se na mais densa e apaixonada das leituras.
Paradoxalmente, apesar da decadência do cultivo da leitura como atividade nobre e continuada, nunca se leu tanto como hoje, graças a três novas formas de leitura: as leituras fragmentadas, as leituras hipertextuais e as leituras digitais.
As mensagens curtas integram-se plenamente numa época onde o esforço de pensar se tornou numa imensa maçada. Correspondem em larga medida à faceta superficial e fútil das relações sociais e a muitas das transações simplificadas a que assistimos nas redes sociais. Em contrapartida, a poderosa orgânica das ligações Web dá hoje acesso a grande parte do saber universal. Para aceder a esse saber, o leitor dos nossos dias tem de ir muito para além da leitura textual tradicional. Em particular, tem de saber construir e dominar com destreza os sistemas de pesquisa, curadoria, captação e agregação de informação em que assenta o acesso aos inesgotáveis repositórios do saber online. Por outras palavras, o leitor dos nossos dias tem de aprender a ler, não apenas para as práticas de leitura do passado, que, mesmo assim, domina mal, mas também para as práticas de leitura online do presente e do futuro, que parece desconhecer por completo.
O mesmo acontece com as leituras digitais. Um documento digital não é a simples versão digital de um texto em papel. É um ecossistema. Pode ser pesquisado pelo conteúdo, sublinhado, destacado a cores, anotado, rabiscado. Permite que durante a sua leitura se consultem diretamente dicionários, enciclopédias e outros documentos de referência. Pode ser duplicado, lido e anotado em várias versões, com registo de distintas anotações em cada caso. Permite copiar partes do texto para ambientes onde queiramos trabalhá-las. Pode ser posicionado lado-a-lado com documentos com os quais queiramos confrontá-lo. Pode ser recordado em minutos, anos após a última leitura, graças às anotações que nele deixámos. Pode ser lido às escuras e ajustado em vários dos seus parâmetros, como o tamanho das letras. Por outro lado, várias aplicações de leitura de documentos digitais, como as do Kindle, constroem automaticamente novos textos a partir das anotações, facultando novas formas de trabalho. Nos nossos dias, um universitário que não se movimente com desenvoltura nestas práticas dificilmente poderá afirmar que sabe ler. Pelo menos, não saberá ler documentos digitais.
A decadência da leitura profunda gerou a decadência da reflexão crítica. O cidadão dos nossos dias não domina o pensamento crítico porque não aprendeu a construí-lo, autonomamente, pela leitura. Confinado que está às limitações da sua vivência pessoal, fechado às leituras reais e imaginárias que iriam abri-lo para o mundo, não reconhece a imensa diversidade desse mundo nem a complexidade dos sentimentos humanos, que apenas vislumbra pelos padrões da sua limitada convivência do dia-a-dia. E como não aprendeu, pela leitura, a exprimir por palavras a riqueza e diversidade do mundo em que vive, não consegue sequer refletir sobre elas, visto que não há pensamento sem palavras que o sustentem. A sua incapacidade para ler criticamente o texto e o contexto fecha os seus horizontes e torna-o dependente, manipulável e vulnerável a todas as falsas verdades.
Por todas estas razões, o fator mais crítico da formação universitária dos nossos dias é dominar a Arte da Leitura, nas suas três vertentes. Por um lado, a leitura profunda, ativa e continuada, que herdámos dos nossos antepassados, mas que estamos a desaprender, por falta de prática. Por outro lado, a leitura do espaço online, que inclui hábitos de pesquisa, curadoria, captação e agregação de informação e gestão de referências. Um universitário dos nossos dias, perante o computador que o liga à rede, é como um piloto aos comandos do seu avião: com um simples olhar ou movimento de mão tem acesso a uma imensidade de instrumentos que facilitam e enriquecem a sua tarefa. Finalmente, a arte da leitura digital: ler um documento digital como se fosse em papel, queixando-se de que a sua leitura é inferior, é não reconhecer as virtudes de nenhuma das leituras. É como comparar uma viagem em carruagem de cavalo com uma viagem de automóvel e concluir que a primeira é melhor porque não gasta gasolina. Só aprendendo a ler documentos digitais se poderá tirar partido das suas riquíssimas virtudes.
NOTA – Este texto foi originalmente publicado no Jornal MIL FOLHAS, da Biblioteca da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em fevereiro de 2021 (https://www.uc.pt/site/assets/files/623129/mil_folhas_n2.pdf).
Nos últimos trinta anos houve três oportunidades históricas para as universidades se renovarem para o século XXI. A primeira surgiu nos anos noventa, com a criação da gestão moderna, que as universidades insistiram em não assumir, fomentando assim o assalto ao poder universitário pelas soluções empresariais. A segunda aconteceu em meados da década de 2000, com a reforma de Bolonha, que também se perdeu, desta vez em indefinições e ambiguidades. A terceira apresenta-se agora aos nossos olhos sob a forma de uma crise: a crise da pandemia. Seremos capazes de aproveitar esta terceira oportunidade?
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1. A oportunidade perdida da gestão moderna
Três dos pilares decisivos do século XXI surgiram em meados do século XX. Um deles foram as ciências e tecnologias da informação, surgidas nos anos quarenta com a invenção do computador digital. Outro foram as ciências e tecnologias da vida, surgidas nos anos cinquenta com a descoberta da estrutura do DNA, em 1953. O terceiro pilar foi a gestão moderna, marcada pela publicação, por Peter Drucker, em 1954, do livro The Practice of Management. Estes três pilares transformaram o mundo.
Quando, nos anos setenta, as empresas mundiais mais inovadoras começaram a reinventar-se à luz deste terceiro pilar, as universidades ignoraram a oportunidade, embora já fossem vulgares os protestos contra a sua prestação. Os estudantes queixavam-se de salas superlotadas, docentes indiferentes à pedagogia, excesso de teoria relativamente à prática, avaliações arbitrárias e planos de estudo incoerentes. Os recrutadores queixavam-se da falta de sentido prático dos graduados, da sua pobreza de atitudes e valores e do desajuste dos planos de estudos relativamente às necessidades do mercado. Por seu turno, os governos e os contribuintes queixavam-se do amadorismo e falta de transparência da gestão universitária.
“Num mundo que é hoje de presença e distância, onde a aprendizagem acontece cada vez mais à distância, a universidade não pode deixar de se prolongar para a distância“
Abria-se nessa altura uma oportunidade histórica para as universidades se transformarem por dentro, incorporando as dinâmicas da gestão moderna, que reforçariam as suas já consolidadas dimensões académica e científica. Ao voltarem as costas ao desafio, viram-se arrastadas pela onda de neoliberalismo que então varreu as economias ocidentais e acabaram entregues a gestores que a converteram no arremedo de empresas que hoje conhecemos.
2. Bolonha e a reforma fracassada
A grande oportunidade de refundar para o século XXI a pedagogia universitária na Europa surgiu com o Processo de Bolonha, cujo modelo pedagógico rompia com os paradigmas do ensino e da centralidade do docente e adotava os paradigmas da aprendizagem e da centralidade do aluno.
Infelizmente, a preparação pedagógica da maioria dos docentes europeus era insuficiente para lhes permitir, sequer, compreender a diferença entre os dois paradigmas. Houve iniciativas europeias de grande mérito, como o Projeto Tuning, que procuraram promover a preparação pedagógica para a transição, mas só foram seguidas por quem tinha curiosidade — e muito pouca gente tinha curiosidade.
Faltou, por outro lado, o que os sociólogos da inovação chamam um ponto de passagem obrigatório, um condicionamento dos comportamentos que incitasse os participantes a transporem as suas práticas para o modelo novo. O resultado foi que o sistema se manteve como estava, apenas com uma alteração de vocabulário que dava a ilusão de que tinha mudado.
Numa perspectiva de sociologia da inovação, os “ECTS” e as “horas de contacto” foram alguns dos objetos de fronteira (boundary objects) criados para assegurar que o sistema antigo se mantinha, dando a ilusão de que era o novo. A invenção de um conjunto de operações aritméticas de “conversão” tornou a ilusão ainda mais credível, sugerindo que bastava fazer umas contas simples para ficar tudo resolvido. A oportunidade histórica para renovar a pedagogia universitária esvaiu-se assim num exercício de indefinição encoberto por artifícios linguísticos e aritméticos.
“a educação exclusivamente à distância só resulta para adultos com elevados graus de disciplina e autonomia”
Se as recomendações originais de Bolonha tivessem sido postas em prática e os respectivos procedimentos interiorizados, a transição para a distância imposta pela pandemia teria sido relativamente simples, visto que quando os cursos se centram em objetivos de aprendizagem, em vez de em “conteúdos a ministrar”, é relativamente fácil reconfigurar os contextos (presenciais ou distantes) da sua leccionação.
3. A pandemia e o fim da universidade artesanal
Quando a pandemia surgiu, transformou-se num teste de stress à capacidade das instituições para responderem à complexidade e incerteza do século, com destaque para a economia, finanças, segurança social, saúde e educação. Em todas essas frentes, as instituições revelaram graves fraquezas. Nas universidades, a pandemia deixou a descoberto duas grandes fragilidades. Por um lado, a inadequação dos seus modelos organizacionais e pedagógicos a uma geometria variável de presença/distância e sincronismo/assincronismo. Por outro lado, uma notória inaptidão pedagógica para as formas não-presenciais de aprendizagem.
Curiosamente, os cursos das universidades portuguesas já tem há muito anos uma componente à distância, que as universidades parecem desconhecer. Quando, nos anos noventa, as universidades instalaram plataformas online de gestão de conteúdos, muitos dos alunos passaram a prescindir das aulas teóricas e a frequentar apenas as aulas onde a sua participação ativa era indispensável. Do ponto de vista dos alunos, o regime passou a ser de aprendizagem mista (blended learning), com componente teórica online e componentes práticas e laboratoriais presenciais. Para os professores, pelo contrário, tudo se manteve como dantes. Deste modo, os cursos são consumidos como mistos mas construídos e planeados como presenciais, com deficiências graves que não existiriam se fossem concebidos para os fins a que se destinam.
Num mundo que é hoje de presença e distância, onde a aprendizagem acontece cada vez mais à distância, a universidade não pode deixar de se prolongar para a distância. Precisa, por isso, de pôr em prática as pedagogias de nova geração desenvolvidas ao longo das três últimas décadas, que incorporam as novas realidades tecnológicas e sociais, os progressos das ciências da educação e as dinâmicas de ensino e aprendizagem nas quais a presença e a distância se completam. Este enquadramento implica, por sua vez, o desenvolvimento de orgânicas flexíveis de gestão de espaços e tempos e novas abordagens para a concepção e gestão da qualidade dos cursos.
No fracasso de Bolonha foi manifesta a inexistência de um ponto de passagem obrigatório que condicionasse os comportamentos dos diversos atores e os incitasse a transitarem do modelo antigo para o modelo novo. No caso da pandemia, o ponto de passagem obrigatório existiu e foi ponderoso: o ensino à distância. Quer as universidade gostassem, quer não gostassem, quer soubessem, quer não soubessem, esse foi o único percurso que puderam seguir. Que melhor estímulo poderia existir para investir com profissionalismo na refundação dos modelos universitários à luz deste desafio?
Não se trata, como é óbvio, de prescindir da tradição presencial da universidade. Pelo contrário, quanto maior for a incerteza dos tempos, mais ricas terão de ser as interações no seio da comunidade de cultura e saber que é a universidade. Acresce que a educação exclusivamente à distância só resulta para adultos com elevados graus de disciplina e autonomia, um público que também interessa à universidade, mas que é muito distinto do grosso da população que hoje a procura.
“uma universidade que não assuma a nova universalidade dos saberes e a abertura para um mundo que é hoje de presença e distância será uma universidade paroquial”
Convém não esquecer, no entanto, que, no século XII, o que distinguiu as primeiras universidades das escolas monacais que as precederam foi o seu carácter universal e a sua abertura para o mundo. No século XXI, uma universidade que não assuma a nova universalidade dos saberes e a abertura para um mundo que é hoje de presença e distância será uma universidade paroquial. Por isso, a universidade dos nossos tempos não poderá deixar de se prolongar para a distância, aí construir parceiras e colaborações, aí assegurar presença e atração, aí alargar os seus mercados e aí colocar os cursos que melhor a projectem para o mundo.
4. Os desafios da distância
Para compreender, numa primeira aproximação, o que está envolvido na transição do modelo tradicional para os modelos que incorporam a distância, é útil ter em conta seis variáveis relevantes: simultaneidade, tempo, controlo, ritmo, tecnologia e empatia.
Simultaneidade. Na aula tradicional, o professor explica e coloca desafios; o aluno ouve e reage aos desafios. Tudo acontece em simultâneo. Na educação à distância, professor e aluno raramente se encontram online. Na verdade, quanto mais maduros e autónomos são os alunos, mais prescindível se torna a simultaneidade. Para um professor tradicional, a simultaneidade é tão essencial como o oxigénio para respirar. Por isso, ao enfrentar a distância, agarra-se ao software de videoconferência como a uma tábua de salvação e, ao fazê-lo, transgride todos os princípios da educação à distância.
Tempo. O tempo do professor tradicional é o tempo do toque horário, um padrão herdado de há duzentos anos, quando a escola de massas foi concebida à imagem das indústrias de então. Os tempos da aprendizagem à distância são os tempos da cognição humana, que a psicologia dos últimos cem anos e as neurociências das últimas décadas demostraram serem muito distintos dos tempos industriais do passado. Módulos letivos de dez ou quinze minutos, intercalados com tarefas de realização autónoma, podem ser incomparavelmente mais eficazes e estimulantes do que as soluções presenciais.
Controlo. Por força da simultaneidade, o controlo das aulas tradicionais está fortemente centrado no professor, privilegiando a explicação e inibindo a autonomia do aluno. Na educação à distância, o controlo da aprendizagem pode ser aberto e evoluir para formas de colaboração, avaliação pelos pares e co-aprendizagem que reforçam a aprendizagem e incentivam o desenvolvimento da autonomia. A transição para o ensino à distância de emergência, em março de 2020, teria sido muito mais fácil se os jovens possuíssem a autonomia que hoje não têm e que os mercados de trabalho tanto reclamam.
Ritmo. A variedade de ritmos das aulas tradicionais é delimitada pela exigência da presença numa única sala. No espaço online, os ritmos são inesgotáveis. Recorrendo, por exemplo, às pedagogias de projeto (project based learning), podem pôr-se os alunos a trabalhar autonomamente ou em grupos, só os reunindo presencial ou virtualmente no fim, para síntese e avaliação. Também se podem inverter os ritmos de trabalho (flipped learning), facultando materiais que os alunos estudam autonomamente, após o que reunem em plenário para debaterem, consolidarem e avaliarem os saberes adquiridos.
Tecnologia. O sentimento de insegurança gerado pela abrupta adopção das tecnologias leva alguns professores a usarem-nas em demasia na comunicação com os alunos. Ora a máxima do recurso saudável às tecnologias na educação é que essa interação como professor seja tão contida quanto possível, libertando os alunos para trabalharem autonomamente ou para interagirem com os colegas em trabalhos de grupo que eles próprios aprendam a gerir.
Empatia. Nas aulas presenciais, a ligação emocional entre professor e alunos é espontânea. Basta um olhar rápido do professor pela sala para reconhecer o entusiasmo, a indiferença, a dúvida ou a desistência de um aluno. Como na educação à distância esses sinais não existem, é importante que o professor projecte a sua empatia, mostrando que “está lá”, não em corpo, não em ecrã, mas pronto a acudir sempre que for necessário. Às vezes, basta uma palavra de incentivo, uma mensagem curta ou um telefonema a dizer “gostei do teu trabalho!”.
5. A essência do desafio
Há trinta anos, as universidades perderam uma oportunidade única para incorporarem a gestão moderna nos seus modelos, abrindo assim as portas às soluções universitárias neoliberais. Quinze anos depois, perderem a oportunidade que Bolonha lhes oferecia para renovarem as suas pedagogias. Irão elas ignorar agora a oportunidade de renovação que a pandemia lhes proporciona? Se o fizerem, não irão abrir as portas às soluções universitárias hiperliberais e uberizadas que se anunciam?
[Nota – Este texto foi publicado originalmente no jornal sinalAberto de 17 de outubro de 2020]
Portugal viveu nos primeiros dias de setembro um conflito em torno da Educação para a Cidadania e Desenvolvimento, uma área curricular que visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas e solidárias que conheçam e exerçam os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo. Consultando a plataforma oficial, observamos que a documentação disponibilizada pela Direção-Geral de Educação para apoiar a área é abundante e de qualidade e alinha plenamente com as recomendações internacionais na matéria. O que faltou, então? O que parece ter faltado, como acontece com frequência na nossa vida política, foi assegurar que o lançamento da nova iniciativa fosse acompanhado por uma proposta de valor que a credibilizasse e incentivasse a sua adopção por todas as partes envolvidas: alunos, encarregados de educação e professores.
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Compreende-se a dificuldade em criar uma tal proposta. Uma coisa é conceber uma área que apenas se dirige à cognição, como acontece com as disciplinas tradicionais. Outra, bem diferente, é abrir espaço para valores, atitudes e práticas, que, como é sabido, não se ensinam: aprendem-se. Ora, para tornar possível uma aprendizagem estimulante e com efeitos duráveis, sem ceder à tentação fácil, mas inútil, de ensinar “conteúdos”, é essencial clarificar os contextos e pedagogias a adoptar e inspirar nos professores a confiança de que necessitam para levar a bom termo essa delicada missão. Sem isso, a área curricular arrisca-se a não ter, junto dos seus atores do terreno, nem credibilidade, nem defensores, nem entusiastas. Será um estorvo curricular, aberto a degenerações, interpretações abusivas e, naturalmente, ataques.
O conflito tornou claras três questões que hoje se colocam nos sistemas escolares:
Como promover inovação curricular que contemple o desenvolvimento de competências, valores e atitudes?
Que pedagogias adoptar para o efeito?
Como formar os docentes para esta realidade?
Inovação curricular
Os desafios que hoje se colocam à inovação curricular nas escolas estão equacionados em grande variedade de recomendações internacionais, desde o pioneiro Relatório Faure (1972), da UNESCO, aos recentes quadros de referência da OCDE, como The Future of Education and Skills, ou o referencial de literacias fundacionais, competências e qualidades de caráter do World Economic Forum. O próprio Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, do nosso Ministério da Educação, se inscreve neste movimento. A principal dificuldade em passar estas recomendações à prática resulta da sua escassa relação com os paradigmas pedagógicos tradicionais em que assenta o nosso sistema escolar.
Desde logo, as novas recomendações não se prestam à fixação de currículos baseados em conteúdos rígidos, mas sim à exploração de currículos dinâmicos, abertos, orientados por objetivos de aprendizagem, assentes em grandes linhas estruturantes e aferidos por modelos de qualidade que permitam acompanhar a concretização no terreno, tanto do ponto de vista dos alunos como do sistema. Este conceito de currículo aberto, ou itinerante, como lhe chamava um colega da PUC-SP numa reflexão recente sobre a resiliência dos sistemas escolares face à pandemia, exigem professores solidamente formados, confiantes e capazes de se ajustarem com agilidade aos contextos deste tipo de aprendizagem.
Nos sistemas escolares atuais, seria impossível e imprudente tentar promover a inovação curricular pela transição de todas as disciplinas de um modelo curricular clássico, baseado em conteúdos estáticos e concebido para exploração formatada, para um paradigma flexível, de nova geração, como o acima mencionado. O que seria possível e desejável, numa perspetiva de inovação curricular que abrisse portas para evoluções futuras, seria explorar a nova modalidade numa só disciplina ou área curricular, com professores experientes e mobilizados para o desafio. A área de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento representa, sem sombra de dúvida, o espaço curricular ideal para pôr em prática este tipo de inovação, que, futuramente, e em função dos progressos conseguidos, poderia ser alargada a outras disciplinas.
Pedagogias de nova geração
O diagrama da figura representa um mapa-resumo das principais pedagogias da atualidade, classificadas em seis categorias, que se desdobram em subcategorias. Muitas delas não existiam há duas décadas, a não ser de forma embrionária. Hoje, todas se encontram amplamente descritas na literatura e são objeto de estudo científico. Apesar da diversidade e riqueza deste universo, muitos docentes dos nossos dias apenas se sentem à vontade com as pedagogias magistrais e desconhecem a maior parte das restantes.
Mapa das Pedagogias em 2020 (António Dias de Figueiredo)
É hoje reconhecido que só é possível aprender competências, valores e atitudes através da prática responsável em contextos de colaboração e convivência social ricos em desafios e dilemas. Torna-se assim indispensável habilitar os docentes da área curricular de Educação para a Cidadania para alternativas pedagógicas de nova geração, com destaque para as pedagogias da emancipação, as pedagogias de projeto e as pedagogias da socialização.
Este desafio não se limita, no entanto, à área curricular de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Os progressos das últimas décadas nas ciências da educação e nas neurociências apontam para uma desvalorização rápida das pedagogias magistrais, a favor das pedagogias de nova geração, que, por sua vez, se revelam adaptadas para serem exploradas tanto presencialmente como online. Num mundo onde a presença e a distância se confundem e as escolas iniciaram o seu prolongamento irreversível para a distância, tornou-se assim decisivo preparar os docentes, todos, para as pedagogias de nova geração.
Que ambientes curriculares delimitados poderão ser usados como oficinas de formação para, numa primeira fase, promover e consolidar esta preparação? A área curricular de Educação para a Cidadania representa certamente um tal ambiente. Vemos assim que, tal como acontece para a inovação curricular, também para a inovação pedagógica a área curricular de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento oferece um contexto a partir do qual se poderá, posteriormente, promover a propagação da inovação para outras disciplinas.
Formação dos docentes
A docência é uma profissão da prática, como a medicina. Nenhum doente entregaria a sua saúde a um médico que não tivesse longa prática clínica, por muita teoria que ele soubesse. As profissões da prática assentam em muita teoria, mas o que as distingue das profissões da teoria é a imensidão de conhecimento que nelas se constrói, todos os dias, pela prática. Esse conhecimento é maioritariamente tácito. Por vezes, usamo-lo sem notar. Outras vezes, trazemo-lo à consciência, mas não sabemos explicitá-lo, como quando ensinamos alguém a andar de bicicleta. A aprendizagem da linguagem pelas crianças é igualmente tácita, tal como é tácito quase tudo o que aprendemos no relacionamento social. Muito do conhecimento construído e usado pelos professores na sua prática diária é tácito.
O pioneiro do estudo do conhecimento tácito, Mihály Polanyi (1958), distinguia entre conhecimento explícito e conhecimento tácito. O conhecimento explícito é o que pode ser descrito objetivamente, explicado, sistematizado, codificado e comunicado. O conhecimento tácito é intuitivo, contextual e radicado na experiência. Como surge na dinâmica do uso, é praticamente impossível explicitá-lo, organizá-lo e comunicá-lo. Por vezes, nem reside na mente de quem o usa, mas na mente coletiva do grupo onde é levado à prática. Esta realidade é hoje estudada nas epistemologias da prática e fundamenta visões muito inovadoras, tanto da aprendizagem como da sociologia das profissões da prática, onde se destaca a docência.
Alguns autores sugerem que o conhecimento explicito é a ponta do iceberg do conhecimento total, onde a componente submersa, incomparavelmente maior, é a tácita. Se assim for, a formação tradicional de docentes, que hoje se centra largamente em conhecimento explícito, cobre uma proporção ínfima do conhecimento que se pode adquirir pela prática. O investigador japonês Ikujiro Nonaka (1994), que estudou as relações entre os dois tipos de conhecimento, confirma a dificuldade de converter conhecimento tácito em explícito, ou externalização, e insiste em que a única forma viável de adquirir conhecimento tácito, esse imenso espaço de saber, é pela socialização.
Antes de existirem espaços online, e apesar do sucesso das teorias socioculturais da aprendizagem, a socialização estava sujeita às limitações da interação presencial. Com a eclosão dos espaços online, a socialização expandiu-se, enriqueceu e tornou possível a aquisição de conhecimento tácito em larga escala através da comunicação online. Os MOOCS contextuais, as comunidades de prática e os processos de coaprendizagem e inteligência coletiva são exemplos desta realidade. Em Portugal, tivemos um exemplo admirável deste fenómeno quando, na véspera do fecho das escolas, em 13 de Março de 2020, um escasso grupo de professores lançou o espaço online Somos Solução / eLearning – Apoio, de ajuda mútua para o ensino à distância e, três meses depois, esse espaço, que continua a crescer, já envolvia ativamente cerca de 30.000 membros.
Este exemplo nacional de formação dos docentes para a prática, e pela prática, com dezenas de milhares de participantes, que aderiram por sua própria iniciativa, representa uma inovação enorme, mesmo a nível mundial, e confirma o mérito das modalidades de formação de professores que se distanciam das rotinas tradicionais de treino para audiências passivas e abraçam a aprendizagem social em larga escala e as comunidades de prática. Conjugadas com as abordagens, mais tradicionais, de formação teórica para as pedagogias de nova geração, têm um potencial muito elevado, que seria uma pena que desperdiçássemos.
[Nota – Este texto foi publicado originalmente no jornal sinalAberto de 19 de setembro de 2020]
A escola nunca foi tão necessária nem tão insuficiente. Necessária, porque a maior parte das famílias não tem tempo nem espaço para educar os filhos, nem para os tratar como crianças. Necessária, porque as desigualdades sociais são cada vez maiores e só a escola pode atenuá-las. Necessária porque as crianças estão cada vez mais inundadas de tecnologias e cada vez mais carentes de afeição e valores. Necessária, porque neste nosso mundo não há outro lugar onde as crianças possam aprender a construir autonomia, responsabilidade e democracia. É, apesar disso, cada vez mais insuficiente. Insuficiente, porque o conhecimento humano aumenta a ritmo vertiginoso, tornando obsoleto o que é hoje novo e seguro, e não há escola que possa acompanhar uma tal explosão de saber. Insuficiente, porque cada vez há mais contingências e incertezas que não podem ser superadas com o conhecimento existente. Insuficiente, porque o próximo futuro será muito distinto do presente, mas ninguém sabe como é que ele será.
Créditos: Image Creator
Desconhecendo-se o futuro, cada um terá de aprender por si próprio, em permanência, para o que der e vier (just in case), segundo as ambições que for construindo e as oportunidades que se forem abrindo. Por outro lado, cada um terá de aprender a aprender por si próprio, no momento (just in time), perante os desafios inesperados e desconhecidos que se forem erguendo no seu percurso. A escola, que tinha a missão de desenvolver saberes para um mundo conhecido, tem agora a missão adicional de construir autonomia para um mundo desconhecido.
Uma escola para a autonomia
Esta necessidade de uma escola para a autonomia, hoje reconhecida como vital para a sobrevivência das novas gerações, é debatida há mais de um século por pensadores e educadores. Nas últimas décadas, também as grandes instituições da educação passaram a enfatizar o imperativo de um escola para a autonomia. A UNESCO dedicou-lhe o Relatório Faure (1972), que popularizava o conceito de educação ao longo da vida e a importância de aprender a aprender. Um vinte e cinco anos mais tarde, produzia o Relatório Delors (1998), que reforçava os princípios de uma educação para a autonomia assente em quatro pilares: aprender a saber, aprender a fazer, aprender a viver em conjunto e aprender a ser.
A escola, que tinha a missão de desenvolver saberes para um mundo conhecido, tem agora a missão adicional de construir autonomia para um mundo desconhecido
Curiosamente, o imaginário humano tem revelado ao longo dos séculos um grande fascínio pelos desafios da construção autónoma do saber perante mundos desconhecidos. No século XII, o conto Hayy Ibn Yaqzan do filósofo árabe andaluz Ibn Tufayl sobre uma criança que cresceu sem educação ou enquadramento humano e ascendeu a supremos níveis de compreensão do mundo, da fé e de si próprio, lançaria o conhecimento autodidata no centro da reflexão epistemológica europeia, inspirando os pensadores e artistas do Iluminismo e os humanistas da Renascença. Figuras tão distintas como Bacon, Milton, Locke e, naturalmente, Defoe, com o seu Robinson Crusoe, enriqueceram a reflexão sobre a autonomia na construção de conhecimento, influenciando por sua vez Spinoza, Voltaire, Rousseau e, de forma mais discreta, muitas outras figuras, como Schopenhauer, Coleridge, Nietzche, Heidegger, Camus ou Michel Foucault.
Pedagogias da explicação versus pedagogias da autonomia
As pedagogias da explicação, que hoje predominam nas nossas escolas, dificultam, em vez de facilitarem, o desenvolvimento da autonomia. Ao partirem do princípio de que o que está escrito no manual deve ser explicado pelo professor, em vez de descodificado e apropriado pelo aluno, por muito claro que seja o manual, criam a convicção de que cabe ao professor a responsabilidade de “ensinar” e ao aluno a tarefa de “reter” o que foi explicado. Esta dependência está tão enraizada nas rotinas escolares dos nossos dias, que o aluno, feliz por não ter de pensar muito, a vê como um direito e não como uma desvalorização da sua inteligência. O fenómeno é semelhante ao do analfabetismo funcional descrito por Adler e Van Doren, em How to Read a Book, quando afirmam que há muita gente que pensa que sabe ler, mas na verdade não sabe, porque não dá conta de que ler não é reconhecer sequências de palavras e frases, mas sim compreender laboriosamente o mundo que se encontra para além delas.
As pedagogias da explicação, que hoje predominam nas nossas escolas, dificultam, em vez de facilitarem, o desenvolvimento da autonomia
Em oposição a estas pedagogias da explicação, que predominam há mais de dois séculos, as pedagogias da autonomia ajustam-se na perfeição à era de complexidade, incerteza e interação social em que vivemos. Infelizmente, não existem ainda manuais dedicados a esta forma tão distinta de ver a educação, pelo que a descrevo aqui em traços largos.
O universo das pedagogias da autonomia
As pedagogias da autonomia apresentam-se hoje com uma grande variedade, que assenta em três tradições pedagógicas que se sobrepõem parcialmente:
as pedagogias da emancipação,
as pedagogias da socialização, e
as pedagogias do projeto
A formulação mais antiga e coerente das pedagogias da emancipação é provavelmente a maiêutica socrática, ainda hoje vista como uma abordagem pedagógica de excelência. A simulação e o jogo, que já inspiravam as didáticas da Escola Nova nos fins do século XIX e princípios do século XX, são outro exemplo de abordagem emancipatória, hoje com o seu potencial muito reforçado pelo uso dos computadores. Como variante das abordagens de simulação, a pedagogia dos casos, já praticada há mais de um século pela Harvard Business School, distribui aos alunos descrições ficcionadas de casos complexos e estabelece-lhes prazos para que, recorrendo à bibliografia que queiram, resolvam autonomamente esses casos e defendam perante colegas e professor as soluções que propõem.
A aprendizagem híbrida ou mista (blended learning), que combina componentes presenciais e online, é outra abordagem que reforça a emancipação, ao conciliar técnicas de aprendizagem dirigida com práticas de aprendizagem partilhada e com orgânicas de aprendizagem autónoma. As pedagogias invertidas (flipped learning) são também indutoras de emancipação, ao incumbirem os alunos de estudarem autonomamente um tópico a aprender, para só depois aplicarem, debaterem e avaliarem em conjunto a respetiva aprendizagem. Algumas instituições têm vindo a explorar com sucesso as pedagogias de exploração do erro, onde os alunos desenvolvem autonomamente projetos complexos e são incentivados a melhorá-los através da identificação e correção dos erros cometidos.
A transição de uma cultura da explicação para uma cultura da autonomia confronta-se desde logo com os hábitos de passividade e dependência que os alunos adquiriram ao longo da sua vida escolar
As pedagogias da socialização tiram forte partido da dimensão online, quer dando expressão a comunidades de prática, quer explorando a produção, individual ou coletiva, de trabalhos que são tornados públicos e discutidos e avaliados pelos pares em redes sociais, abertas ou fechadas. Outro exemplo de pedagogias da socialização são as pedagogias da colaboração, com muitas variedades, desde as que se baseiam na construção de inteligência coletiva em contextos sociais complexos até às que criam espaços de coaprendizagem e coavaliação. Os chamados ambientes pessoais de aprendizagem (personal learning environments) são exemplos de redes de recursos e relacionamentos que cada cidadão dos nossos dias tem vantagem em construir e cultivar para assegurar a sua aprendizagem autónoma ao longo da vida, largamente pela via da socialização.
As pedagogias de projeto inspiram-se na riquíssima tradição das parcerias de trabalho entre mestres e aprendizes (apprenticeship) nas corporações medievais, que evoluíram na Renascença com a incorporação do conceito de projeto. As pedagogias de projeto incluem hoje quatro modalidades distintas, que se sobrepõem parcialmente: as pedagogias da criação, que incentivam o uso livre da criatividade; a aprendizagem baseada em projectos (project-based learning), uma das práticas pedagógicas mais promissoras da atualidade; as pedagogias do pensamento de designer (design thinking) que progridem por aproximações sucessivas segundo percursos de síntese que conciliam as partes e o todo; e as pedagogias do fazer, geralmente desenvolvidas em espaços de fabricação (makerspaces), hoje muito populares em projetos de informática e robótica, mas que se prestam a grande variedade de temáticas, tanto das tecnologias como das artes e das humanidades.
O que se impõe na escola para a autonomia não é uma reforma dos currículos, mas uma reforma das pedagogias
Assegurar a transição
A transição de uma cultura da explicação para uma cultura da autonomia confronta-se desde logo com os hábitos de passividade e dependência que os alunos adquiriram ao longo da sua vida escolar. Para eles, a cultura da explicação é a normalidade, e a normalidade deve continuar. Em condições normais, seria impossível alterar este status quo. Acontece que não vivemos condições normais. Como apontam vários autores, o período de pandemia que vivemos é um “teste de stress” à capacidade das sociedades para confrontaram os desafios de um século que insistem em não reconhecer como distinto do passado. Em domínios chave como o trabalho, a saúde pública e a educação, as fragilidades reveladas são de monta. Nada seria mais grave do que regressarmos à normalidade sem resolver essas fragilidades e termos de as confrontar mais tarde, porventura muito ampliadas, já nas próximas crises do século.
O que se impõe na escola para a autonomia não é uma reforma dos currículos, mas uma reforma das pedagogias. A reforma das pedagogias levará certamente à adaptação dos currículos, mas o essencial da mudança está nas pedagogias. Tratando-se de práticas conhecidas, embora ainda pouco aplicadas, seria catastrófico que perdêssemos esta oportunidade para, pela sua incorporação no sistema, criarmos uma escola capaz de preparar as próximas gerações para aprenderem a aprender, fazer, conviver, ser, pensar, poder, empreender e transformar. Uma escola que criasse autonomia em vez de dependência. Uma escola que capacitasse os jovens da próxima geração para assumirem autonomamente a construção do seu próprio destino e de um mundo melhor.
[Nota – Este texto foi publicado originalmente no jornal sinalAberto de 25 de agosto de 2020]
Em abril passado, no auge da pandemia em vários países, a novelista indiana Arundhati Roy escreveu no Financial Times um artigo onde descrevia a pandemia como um portão de passagem entre um mundo velho e um mundo novo, uma “oportunidade para repensarmos a máquina do juízo final que construímos para nós próprios”. Segundo ela, “nada poderia ser pior do que um regresso à normalidade”.
E adiantava: podemos atravessar o portão “arrastando connosco as carcaças dos nossos preconceitos e ódios, a nossa avareza, as nossas bases de dados e ideias mortas, os nossos rios defuntos e céus poluídos”. Ou podemos “viajar leves, com pouca bagagem, prontos a imaginar outro mundo. E prontos a lutar por ele”.
Créditos: António Dias de Figueiredo
Num debate recente, de homenagem ao matemático, educador, divulgador e democrata Bento de Jesus Caraça, fui convidado a pronunciar-me sobre os desafios da educação pós-pandemia, fazendo-o à luz do triângulo temático “Instrução, Tecnologia, Informação”. Nas linhas seguintes procurarei esclarecer o que faria do triângulo e que educação levaria comigo para o novo mundo.
a função essencial da educação não é fornecer “informação”: é transformar mentes. É construir autonomia e paixão. É inflamar imaginações e vontades. É fazer com que quem aprende possa prosseguir por si só, com entusiasmo e confiança
Instrução
Não levaria comigo um ideal de instrução. Levaria, sim, um ideal de educação integral, como o que Bento de Jesus Caraça perfilhava na sua conferência de 1933 “A Cultura Integral do Indivíduo”. Um ideal que também era defendido, anos antes, por John Henry Newman no livro “The Idea of a University”, que tanto influenciou as primeiras grandes universidades norte-americanas a partir do fim do século XIX.
Newman distinguia duas formas de educar: uma mecânica, a instrução, que se consumia no particular, quase sem influenciar a mente; e uma filosófica, a educação propriamente dita, que permitia a cada um ascender por esforço próprio ao saber universal e ao desenvolvimento do caráter. Segundo Newman, a educação assim entendida desenvolvia a integridade, ou qualidade do que é inteiro, combinando entre si os conhecimentos e os valores. Seria essa educação integral, agregadora de saberes e ancorada nos valores humanos, que eu levaria comigo.
num mundo que é hoje de presença e de distância, a educação tem de ser também de presença e distância
uma educação solidamente ancorada na presença, mas onde muito do que é humanidade, comunidade e inteligência só poderá ser encontrado na distância
Tecnologia
A tecnologia faz parte do nosso tempo, pelo que não poderia deixar de a levar. Levá-la-ia, no entanto, com cautela, deixando para trás a sua sujeição ao capital selvagem, a sua apetência para destruir o planeta e criar desigualdade e a dependência que ela induz na mente das crianças e adultos.
O problema da tecnologia não é, porém, um problema de tecnologia. Bento de Jesus Caraça defendia isso mesmo na versão de 1939 do mesmo artigo, que publicou na Seara Nova, onde abordava o que chamava o problema do maquinismo e afirmava que “o problema fundamental é, não um problema de técnica, mas um problema de moral social”. Curiosamente, Heidegger, numa das sua afirmações mais citadas, diria praticamente o mesmo quinze anos depois.
Em suma, levaria a tecnologia comigo, mas levava-a envolvida num novo humanismo que lhe desse alma. Uma tecnologia com face humana e um sentido ético.
temos de aprender sozinhos, à medida que o mundo se transforma e nos vai colocando desafios, tal como hoje faz com a pandemia.
podemos aprender uns com os outros, em comunidade, visto que a tecnologia, a tal que hoje não tem alma, pode ganhar alma se quisermos usá-la para construir inteligência coletiva
Informação
No seu poema “The Rock” (1934), T.S. Elliott perguntava:
Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?
Também poderíamos perguntar:
Para que queremos informação, se não para construir conhecimento?
Para que queremos conhecimento, se não para construir sabedoria?
O historiador Jacob Burckhardt augurava, há século e meio, que a vida moderna seria gerida por “simplificadores brutais”. Referia-se, bem entendido, aos ideais nacionalistas que mais tarde eclodiriam, e que deixariam em chamas a Europa e o mundo.
Infelizmente, apesar desse triste exemplo, a vida moderna está cada vez mais dominada por simplificações brutais. Uma delas, talvez das mais destrutivas, é a ideia, já criticada por Platão, de que a aprendizagem é uma mera transferência de informação ou “conteúdos”. O equívoco nem seria grave se a simplificação não dominasse o discurso dos nossos dias, mas a verdade é que domina, mesmo nas instâncias mais elevadas do poder.
Muitos dos comentários exaltados a que assistimos nos últimos meses a propósito da educação presencial e remota resultaram dos equívocos induzidos por essa ridícula simplificação. O pânico que se instalou, de que as escolas e os professores pudessem ser substituídos por tecnologias destinadas a “transferir” os “conteúdos” para as mentes das crianças, resultou dessa crença ingénua de que educar é apenas transferir informação.
Créditos: António Dias de Figueiredo
Como é evidente, a função essencial da educação não é fornecer “informação”: é transformar mentes. É construir autonomia e paixão. É inflamar imaginações e vontades. É fazer com que quem aprende possa prosseguir por si só, com entusiasmo e confiança. Não é colocar peixes (ou “conteúdos”) nos anzóis de quem não sabe pescar: é criar pescadores confiantes e autónomos, que pesquem por si, quando quiserem e se quiserem.
é essencial que a educação incorpore a tecnologia, em vez de a rejeitar, e que transforme o seu uso recreativo e alienado num uso profissional, competente, humano e contido
Educação integral, tecnologia humanizada e cultivo da autonomia
O que se impõe agora, antes que a oportunidade se extinga, é construir um discurso alternativo que não arraste para o mundo novo as carcaças de uma educação decadente, inspirada nas linhas de montagem das indústrias de há duzentos anos e nas aulas magistrais dos mosteiros medievais.
Um discurso que reconheça que a educação é um fenómeno humano, intelectual, emocional e social riquíssimo. Um discurso que perceba que, de acordo com o princípio da variedade dos requisitos, num mundo que é hoje de presença e de distância, a educação tem de ser também de presença e distância. Será, certamente, uma educação solidamente ancorada na presença, mas onde muito do que é humanidade, comunidade e inteligência só poderá ser encontrado na distância.
Por outro lado, para sobrevivermos nestes tempos cada vez mais incertos, de informação volátil e conhecimento perecível, é essencial aprender em permanência. Como iremos nós aprender em permanência, se ninguém sabe, se ninguém faz ideia de como será o mundo de amanhã? Só há uma solução: como Robinson Crusoe, na sua ilha deserta, temos de aprender sozinhos, à medida que o mundo se transforma e nos vai colocando desafios, tal como hoje faz com a pandemia.
A nossa vantagem, quando comparados com o herói de Defoe, é que podemos aprender uns com os outros, em comunidade, visto que a tecnologia, a tal que hoje não tem alma, pode ganhar alma se quisermos usá-la para construir inteligência coletiva. Para tal, é essencial que a educação incorpore a tecnologia, em vez de a rejeitar, e que transforme o seu uso recreativo e alienado num uso profissional, competente, humano e contido.
É esse o grande desafio da educação integral para o novo mundo: desenvolver os saberes e competências estruturantes que capacitem os nossos jovens para construirem por si sós os saberes de que irão necessitar à medida que o mundo se transforma, e para assumirem, individual e coletivamente, a construção do seu próprio destino e de um mundo melhor.
um novo triângulo: “Educação integral, Tecnologia humanizada, Construção de autonomia”
O desafio que a pandemia nos colocou pode, assim, exprimir-se porum novo triângulo: “Educação integral, Tecnologia humanizada, Construção de autonomia”. É esse o triângulo que eu levaria comigo para o mundo novo.
No livro mais interessante que conheço sobre a metafísica da qualidade, o personagem central, Fedro, procura incansavelmente a verdade. Um dia, está Fedro em casa à procura da verdade, quando a verdade lhe bate à porta. Furioso com a interrupção, Fedro grita lá para fora: “Deixem-me em paz, que eu estou ocupado”. E a verdade foi-se embora! Não podemos correr o risco de que nos aconteça o mesmo.
[Nota – Este texto foi publicado originalmente no jornal sinalAberto de 18 de julho de 2020. Esta versão foi acrescentada com ponteiros para outros conteúdos relevantes e com uma reformulação dos destaques]
Transcrição resumida da minha apresentação no Flash Live Event #somossolução do grupo e-Learning Apoio do Facebook sobre o tema “E Depois do Ensino Remoto de Emergência?”
Credito: Deep Dream Generator
Como prometido, farei o ponto da situação sobre o período de ensino remoto de emergência que as escolas atravessaram até hoje e abordarei de seguida alguns dos desafios que penso que se colocam para setembro.
1. Ponto da situação
O período de ensino remoto de emergência foi uma experiência única e muito difícil para crianças, famílias e pais. Para os professores, para além de difícil, foi muito trabalhosa. No entanto, tal como acontece com todas as experiências únicas e difíceis, foi cheia de ensinamentos.
Para muitos professores, foi a experiência de se conhecerem a si próprios perante grandes dificuldades, e vencerem essas dificuldades. Para outros professores, foi a experiência de pensarem a educação de outras formas e tentarem, em conjunto, construir o impossível, e conseguirem. Para alguns professores, foi o primeiro contacto com o vasto mundo de uma educação que se projeta para o futuro, muito para além das rotinas do dia-a-dia.
Como é habitual, os jornais e os comentadores limitaram-se a encontrar falhas. Não repararam, por isso, que algo de grande e inédito se passou neste período em Portugal: a fortíssima auto-mobilização dos professores, que talvez tenha colocado o nosso país na linha da frente mundial da capacidade de resposta ao fecho das escolas.
Em vez de baixarem os braços, como seria de esperar face à inação do ministério, os professores juntaram-se nas redes sociais e, em 14 de Março, no dia seguinte ao fecho das escolas, criaram no Facebook, por sua livre iniciativa, o grupo “E-learning – Apoio”, dedicado à ajuda entre professores. O grupo regista hoje quase 30000 membros e uma atividade intensa e ininterrupta de ajuda entre professores.
Era interessante sabermos quantos países poderão gabar-se de que um terço dos seus professores, totalizando dezenas de milhares, se auto-organizaram espontaneamente para se ajudarem uns aos outros, transformando o grupo num curso online gigantesco de formação mútua em exercício, à altura dos maiores MOOCs do mundo.
Por todas estas razões, o meu ponto da situação é muito positivo.
2. Desafios para setembro
2.1. Desafios que envolvem os alunos
2.1.1. Recuperar os saberes de forma atraente. O grande desafio da recuperação dos saberes é o de tentar fazê-lo de formas aliciantes, apesar de durar cinco semanas, para que os alunos não percam o entusiasmo do regresso. Neste aspeto, o online tem um papel complementar a desempenhar, permitindo disponibilizar à distância materiais e desafios. Também valerá a pena recorrer à colaboração entre alunos, em pares ou em pequenos grupos, a partir de casa, segundo modalidades de aprendizagem entre pares (peer learning), cujo potencial é desconhecido de muitos, porque não é praticável presencialmente nas escolas, mas que é fácil de explorar à distância.
2.1.2. Acudir às desigualdades. A superação das desigualdades exige um esforço muito grande. Algumas das dificuldades relativas a equipamentos e acesso já foram entretanto resolvidas, e haverá que consolidar agora as práticas que lhes estão associadas. Também aqui, e mesmo para crianças com dificuldades naturais de aprendizagem, o online tem demonstrado poder ser útil, por exemplo, em situações de défice de atenção e excesso de atividade.
2.1.3. Construir autonomia. Agora, que ficou ainda mais clara a necessidade de autonomia na aprendizagem, há que introduzi-la como pano de fundo permanente nas agendas educativas.
2.1.4. Desenvolver comunidade. Agora, que ficou mais clara a necessidade de partilha e ajuda mútua, há que introduzi-la também como pano de fundo permanente nas agendas da educação.
2.2. Desafios que envolvem as escolas
2.2.1. Prolongar a escola para a distância. Importa constituir em cada escola uma cultura e uma infraestrutura tecnológica que a prolonguem para o espaço online.
2.2.2. Fortalecer o ecossistema. O Programa de Estabilização Económica e Social deveria equipar as escolas com servidores, equipamentos, software e acesso Internet que as prolongue com qualidade para a distância. Deveria, além disso, assegurar acesso Internet generalizado a alunos e professores e adquirir telemóveis com boas especificações para os alunos cujas famílias não possam fazê-lo.
2.2.3. Desenvolver geometrias variáveis. As escolas têm de organizar-se de forma a poderem explorar geometrias variáveis no uso dos espaços, dos tempos e dos equilíbrios entre presencial e online.
3.3. Desafios que envolvem os professores
3.3.1. Consolidar comunidade. Prosseguir a entre-ajuda entre professores, consolidando as orgânicas dessa entre-ajuda.
3.3.2. Desenvolver profissionalmente. Para muitos professores, a colaboração durante o ensino remoto de emergência serviu para apagar fogos. Agora, importa que assegure mais serenamente a consolidação profissional e a valorização de cada um e de todos os professores.
3.3.3. Fazer balanços e investigar. O ensino remoto de emergência teve características únicas. Há que identificar agora o que pode ser superado e melhorado já a partir de setembro. Há também um manancial inesgotável de dados para o estudo científico destas novas realidades, que poderá ser feito por equipas mistas de professores e investigadores.
3.3.4. Afirmar opinião. Uma comunidade como esta, com dezenas de milhares de professores, tem uma enorme autoridade profissional e moral, que foi claramente afirmada neste período. Seria útil transformar esse capital num fórum nacional de opinião sobre as grandes questões da educação no Portugal de hoje e do futuro.
A pandemia trouxe a educação à distância para as nossas casas. De um dia para outro, toda a gente passou a falar de educação à distância. A expressão, que já era controversa no contexto profissional onde era usada, explodiu subitamente, num fogo de artifício de interpretações coloridas e ilusórias que lhe destruíram de vez o significado. Quando hoje se discute a educação à distância, a expressão já não quer dizer nada.
A ironia desta efervescência é que a dicotomia entre mundo presencial e mundo online é hoje um falso problema. Os dois mundos já não têm fronteiras. Raras são hoje as atividades individuais e sociais que prescindem das tecnologias digitais, do uso dos telemóveis, da comunicação na Net ou do acesso a repositórios na “nuvem”, onde, de resto, já se encontra armazenada a maior parte dos nossos dados.
Curiosamente, vários comentadores dos media, justamente frustrados com as restrições que a pandemia lhes impôs, passaram a reclamar, não contra a pandemia ou as restrições, mas contra a linha-de-vida que os manteve ligados ao mundo nesse período: o online. Paradoxalmente, foi online que as reclamações contra o online foram mais lidas e foi aí que foram partilhadas e aclamadas. Sem online, teriam sido gotas de água no oceano.
Sentindo que este tipo de contradição, entre o ser-e-não-ser, estar-e-não-estar, dificulta a construção serena do futuro, que nos explodirá nas mãos sob formas indesejáveis se não cuidarmos de o criar com inteligência, a Comissão Europeia lançou, há meia dúzia de anos, o projeto Onlife Manifesto, onde defendeu que assumamos o fim da distinção entre mundos online e offline e reconheçamos que vivemos uma nova ordem social, económica, política e ética no seio da qual esse tipo de distinção não tem sentido. O projeto, liderado por Luciano Floridi, professor de filosofia e ética da informação da Universidade de Oxford, deu origem a um interessante volume de reflexões publicado pela editora Springer em 2015.
Sendo este o mundo alargado que aguarda os jovens das nossas escolas, seria absurdo dividi-lo entre presencial e online. O desafio da educação não é dividir, mas unir, superando as desigualdades sociais que esse alargamento está a gerar sob os nossos olhos. Poderá a escola superar tais desigualdades sem se prolongar harmoniosamente para a dimensão online? Acreditará a escola que lhe bastará “explicar”, por palavras ou imagens, sem integração cultural plena, o que é viver e vingar num mundo misto de presença e distância? Irá a escola fazer como o professor de música que acreditava que se “explicasse” a uma criança onde calcar as cordas teria criado uma violinista de talento?
a dicotomia entre mundo presencial e mundo online é hoje um falso problema. Os dois mundos já não têm fronteiras
Se quisermos construir uma educação que tire partido da dimensão de distância, teremos de compreender, em vez de confundir, a distância de que estamos a falar. Faz sentido, nesse contexto, analisar o que se passou nestes últimos tempos de “ensino remoto de emergência” e compará-lo com as formas de aprendizagem regulares e consolidadas onde o fator distância está presente.
O ensino remoto de emergência
O ensino remoto de emergência não poderia correr bem, nem em Portugal nem em parte nenhuma do mundo, por razões biológicas básicas: a atenção, a memória e a disciplina intelectual de uma criança têm limites que ninguém pode contornar. Só por distração se poderia acreditar que o ensino remoto de emergência iria “cumprir os programas”, sobretudo com as crianças mais novas. Acresce que a autonomia para a aprendizagem da maioria das crianças portuguesas, que não é incentivada nem pelas escolas nem pelas famílias, as colocava em desvantagem para uma modalidade de aprendizagem que assenta, acima de tudo, na autonomia.
Além disso, e embora já houvesse em Portugal, graças à livre iniciativa de alguns professores, escolas com experiência nas práticas e tecnologias da aprendizagem à distância, a maior parte das escolas e dos professores não possuía nem experiência nem tecnologias para as pôr em prática. Nessas circunstâncias, a função primordial do ensino remoto de emergência não poderia ser fazer cumprir programas, sobretudo pelos mais jovens, mas manter as crianças funcionais para a aprendizagem e intelectualmente ativas durante os meses em que se sabia que não iriam à escola — um objetivo nobre, meritório e imensamente trabalhoso.
Nestas condições, se não considerarmos, por momentos, a resposta pronta das escolas e dos professores mais experientes, a transição para o ensino remoto foi uma caótica reprodução por videoconferência do modelo presencial, com os defeitos que lhe são próprios, agora acentuados pelo recurso improvisado às tecnologias. Quanto aos alunos mais desfavorecidos, foi claro que ficaram ainda pior. Alguns deles, três meses volvidos sobre o início do processo, ainda nem tinham aparecido.
talvez tenha colocado Portugal na linha da frente internacional da capacidade de resposta ao fecho das escolas: a ação dos professores
Nos balanços de fim de ano a que agora assistimos, proliferaram as opiniões dos críticos habituais, que, apesar das suas eternas certezas, foram incapazes, na altura própria, de contribuir com as suas sugestões para a resolução do problema. Foi evidente que o Ministério da Educação não esteve à altura do desafio. Também foi notório o eclipse dos sindicatos no período de emergência. Aliás, foi penoso notar no discurso do ministério e dos sindicatos a ilusão antiquíssima de que educar é transferir “conteúdos”, agitada desajeitadamente perante uma pandemia que impunha um ensaio geral para a educação do futuro.
Estranhamente, nenhum dos críticos parece ter notado a faceta invulgar e magnífica deste ensino remoto de emergência, que talvez tenha colocado Portugal na linha da frente internacional da capacidade de resposta ao fecho das escolas: a ação dos professores. Em vez de baixarem os braços, como seria de esperar perante a debilidade da ação ministerial, os professores começaram de imediato a discutir soluções nas redes sociais. Em 14 de Março, dia seguinte ao fecho das escolas, criaram no Facebook, por sua livre iniciativa, o grupo “E-learning – Apoio”, dedicado à ajuda entre professores. Três meses depois, esse mesmo grupo registava quase 30000 membros e uma atividade intensiva e ininterrupta de entreajuda entre professores.
Quantos países poderão gabar-se de que um terço dos seus professores, totalizando dezenas de milhares, se auto-organizaram espontaneamente num grupo de ajuda recíproca que se transformou num exercício gigantesco de formação mútua em exercício? Quanto valerá essa formação, face a uma formação em sala? Que implicações terá tido para a construção de uma cultura coletiva de resiliência perante as dificuldades da docência? Valerá a pena recordar, por contraste, que em abril passado Andreas Schleicher, diretor de educação da OCDE, referindo-se às tentativas do governo espanhol para lançar o ensino remoto, lamentava, numa entrevista ao El País, a falta de colaboração mútua e partilha de soluções por parte dos professores espanhóis.
Em 2008, dois professores canadianos da universidade de Athabasca, George Siemens e Stephen Downes, lançaram um curso à distância que se tornou mundialmente célebre porque mobilizou 2200 pessoas para um projeto coletivo de aprendizagem sem conteúdos. Neste curso, que os seus criadores viriam a teorizar em torno do conceito de aprendizagem conectivista, aprendia-se, não organizando conteúdos, mas debatendo e resolvendo as dificuldades que cada um colocava ao coletivo. Valeria a pena estudar agora, comparativamente, a experiência deste grupo português de 30000 professores, com quase quinze vezes mais participantes.
A aprendizagem combinada
A aprendizagem combinada (blended learning), ou aprendizagem mista, procura conciliar o melhor da aprendizagem presencial com o melhor da aprendizagem à distância. Oferece, por isso, um contexto favorável à compreensão dos paradigmas do prolongamento da educação presencial para a distância. É interessante observar que, sem que professores e alunos se tenham apercebido, as universidades portuguesas já recorrem, em larga medida, a uma forma degradada do modelo combinado.
Quando, já há mais de duas décadas, as universidades portuguesas começaram a instalar plataformas de gestão de conteúdos e a colocar online os materiais dos cursos, muitos dos alunos, cansados de sessões monótonas e com qualidade pedagógica duvidosa, em salas desconfortáveis e a abarrotar, passaram a faltar às aulas teóricas, preferindo trabalhar sobre os materiais online e restringir a sua presença às aulas práticas e laboratoriais onde a sua participação ativa era indispensável. O problema é que os professores continuaram a conceber os cursos para uso presencial, com deficiências que nunca seriam aceitáveis num modelo combinado. O que é estranho é que, sendo o fenómeno reconhecido há mais de uma década, não seja adoptado o novo modelo, eliminando o hibridismo vigente.
as universidades portuguesas já recorrem, em larga medida, a uma forma degradada do modelo combinado
No modelo combinado, todos os materiais pedagógicos (textos, slides, vídeos, podcasts, simulações) são colocados online e as sessões presenciais, embora usadas por vezes para apresentações magistrais, são normalmente reservadas para trabalhos laboratoriais e de grupo, que procuram tirar partido da riqueza social da aprendizagem presencial. A avaliação dos alunos também tende a ser conduzida presencialmente, por um lado para evitar as dificuldades da identificação da autoria, por outro para capitalizar nos benefícios pedagógicos do debate com professores e colegas. Apesar deste caráter predominantemente presencial, a avaliação pode ser muito enriquecida com a dimensão online, nomeadamente por permitir a avaliação anónima pelos pares em trabalhos escritos, projetos e portfólios.
Este modelo presta-se a muitas variantes. No exemplo anterior, a componente de presença é dominante, mas pode acontecer o contrário. Em muitos cursos de formação e mestrado, a maior parte do trabalho decorre online: no primeiro dia as atividades são presenciais, de apresentação, socialização e construção do espírito do curso; o último dia é ocupado com uma conferência de encerramento na qual os formandos apresentam e defendem presencialmente os seus trabalhos. Entre o primeiro e o último dia, os trabalhos decorrem em períodos à distância, relativamente extensos, intercalados com sessões presenciais de um dia ou de algumas horas destinadas a consolidar a aprendizagem e reforçar a componente social.
A educação à distância
Partindo do modelo de aprendizagem combinada, é agora possível caracterizar a educação à distância como sendo idêntica, mas sem a componente presencial. A grande diferença está em que a educação à distância reinventou os seus modelos pedagógicos, libertando-os dos entraves da presença e tirando pleno partido da ligação em rede, da colaboração e da aprendizagem em comunidade. Esta reinvenção, que se renova em permanência, assenta num corpo dinâmico de teoria e prática em domínios tão diversos como as ciências da educação, sociologia, filosofia, comunicação, multimédia, estatística, computação, ciências dos dados e inteligência artificial e exige infra-estruturas e equipas cuja elevada complexidade e sofisticação se aproximam das das indústrias cinematográfica e dos videojogos.
Uma universidade e uma escola que não sejam capazes de se prolongar para a distância não pertencerão, certamente, aos nossos tempos
Deste modo, só por desconhecimento se pode recear, como parece acontecer com a nossa comunicação social, que as universidades e escolas venham a transformar-se em instituições de educação à distância. Primeiro, porque a educação exclusivamente à distância só resulta para adultos ou quase adultos com elevados graus de autonomia e disciplina. Segundo, porque os graus de conhecimentos, sofisticação tecnológica e tempo necessários à concepção de soluções autênticas de educação à distância estão largamente ausentes das nossas universidades e escolas. As universidades e escolas poderão e deverão desenvolver iniciativas de educação à distância que as prolonguem para o espaço online, mas seria absurdo transformá-las em instituições de educação à distância. Tanto mais absurdo quanto mais real se torna nos nossos tempos a necessidade de bons professores: como alertava John Neisbitt, “high tech calls for high touch” (“quanto mais sofisticada é a tecnologia, mais necessário é o calor humano”).
Dito isto, importa não esquecer que vivemos num mundo de presença e de distância. Quer queiramos, quer não, a distância faz parte das nossas vidas. Por isso, faz parte da educação. A aprendizagem à distância, com desafios e tempos moderados, está ao alcance de qualquer ser humano, mesmo muito jovem. Grande parte da aprendizagem dos nossos dias e, sobretudo, da aprendizagem do futuro só poderá ser encontrada à distância. O “espaço das aprendizagens”, nestes nossos tempos, será cada vez mais um espaço à distância, para quem as recebe e para quem as oferece. Uma universidade e uma escola que não sejam capazes de se prolongar para a distância não pertencerão, certamente, aos nossos tempos.
(As fotos são do autor)
[Nota – Este texto foi publicado originalmente no jornal sinalAberto de 20 de junho de 2020. Esta versão foi acrescentada com ponteiros para outros conteúdos relevantes e com uma reformulação dos destaques. O texto passou a ser ilustrado integralmente com fotos do autor]