Não Olhem para Cima

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Em Portugal não há grande tradição de campanhas de sensibilização cívica pela televisão e pelo cinema. Mesmo assim, fizeram-se em tempos algumas pequenas campanhas para a prevenção de fogos e a redução da mortalidade nas estradas. Curiosamente, os enredos escolhidos para essas campanhas eram invariavelmente humorísticos, como se para cativar a atenção de um público pouco cultivado fossem necessárias histórias leves e divertidas. Foi assim que assistimos a campanhas sobre florestas devastadas por fogos, e trágicos acidentes de automóvel, a serem recebidas pelo público com um sorriso bem-disposto, como se fossem algo de divertido. Sempre senti que as estratégias de sensibilização divertidas era um tiro no pé porque normalizavam a tragédia e diluíam as responsabilidades.

Lembrei-me destas dificuldades do discurso da sensibilização cívica a propósito do filme “Não Olhem para Cima” (“Don’t Look Up”), agora disponível na Netflix, uma parábola inteligente sobre a eminência do colapso da vida na Terra, onde a crise climática que hoje vivemos é metaforicamente substituída pela aproximação de um asteroide que se dirige para a Terra, algo em que ninguém acredita, a começar pelos políticos que poderiam evitar a catástrofe. Mesmo quando estes começam a convencer-se da autenticidade do fenómeno e se apercebem de que podem retirar dividendos políticos se tentarem um salvamento vistoso, acabam por retroceder, sob a pressão das grandes empresas, que os seduzem para os ganhos financeiros a extrair dos metais raros transportados pelo asteroide.

A designação “Não Olhem para Cima” é o apelo que os políticos inculcam nas mentes dos seus apoiantes, e que estes repetem fanaticamente, mesmo quando o rumo inexorável do asteroide em direção à Terra já é visível a olho nu e só quem não olhar para cima poderá acreditar que não vai acontecer.

A parábola do filme está bem explorada, os diálogos são inteligentes, a representação conta com um elenco de atores de luxo e a fotografia é excelente, mas a adoção do tom humorístico, com Meryl Streep em registo Mama Mia, é um tiro no pé que, tal como nas campanhas de sensibilização portuguesas, destrói a intenção pedagógica.

A meu ver, “Don’t Look Up” compara-se desfavoravelmente com “On the Beach”, um romance de Nevil Shute, convertido para o cinema em 1959 por Stanley Kramer, que descreve um futuro apocalíptico onde a poluição radioativa resultante de um violento conflito nuclear destrói todos os seres humanos do hemisfério norte e se espalha inexoravelmente para sul. A ação do filme, que conta com alguns dos melhores atores da época, decorre na Austrália e retrata como os últimos sobreviventes do planeta aguardaram o momento da sua própria extinção. Nas cenas finais do filme, já sem sobreviventes, vemos as ruas desertas de Melbourne varridas pelo vento e numa das praças da cidade um dístico a agitar uma patética mensagem de esperança: “Ainda há tempo … Irmão”.

Do ponto de vista histórico, há quem defenda que “On the Beach” teve um papel decisivo na sensibilização da opinião pública e dos decisores políticos mundiais para os riscos de uma guerra nuclear, que chegou a estar eminente. Não estou convencido de que o tom bem-disposto de “Don’t Look Up” tenha idêntico impacto na contenção da crise climática!

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