A decadência da leitura profunda gerou a decadência da reflexão crítica. O cidadão dos nossos dias não domina o pensamento crítico porque não aprendeu a construí-lo, autonomamente, pela leitura
Paulo Freire, um dos mais influentes pensadores da educação do século XX, autor da Pedagogia do Oprimido, encarava a educação como parte de um projeto político de libertação da dependência e da opressão. Segundo ele, a educação deve desenvolver nos cidadãos competências de autorreflexão, autonomia e intervenção crítica que os habilita a construírem os seus próprios destinos e o bem coletivo. Para Freire, a aprendizagem não é um simples meio de preparar cidadãos para empregos, mas um instrumento que os liberta das limitações da sua condição e os habilita a conquistarem, individual e coletivamente, o poder para construirem o seu destino e intervirem no mundo.
Não surpreende, por isso, que um dos seus livros mais populares, A Importância do Ato de Ler, se dedique ao papel-chave da leitura no contexto desse projeto de libertação. Para Freire, o ato de ler “não se esgota na descodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas antecipa-se e alonga-se na inteligência do mundo” e “o contexto gera a compreensão do texto, mas a leitura do texto enriquece a compreensão do contexto”. Para se compreender o mundo e intervir na sua transformação é necessário ler sobre ele em permanência. Caso contrário, fica-se reduzido a um estatuto de dependência e eventual opressão, que será tanto maior quanto maior for a ignorância.
Infelizmente, as práticas pedagógicas dos nossos dias, ainda prisioneiras do modelo magistral medieval, contribuem para desincentivar a leitura. Ao assentarem na transposição dos livros de estudo para a palavra oral do professor, libertam os estudantes do esforço de reflexão autónoma e crítica a que a leitura os obrigaria, criando-lhes a convicção de que não necessitam de pensar para aprenderem. Este regresso a um passado onde o discurso da oralidade dominava o discurso da leitura agravou-se com a banalização do discurso oral e visual dos multimédia, generalizando uma preguiça de pensar que exclui cada vez mais a leitura crítica e reflexiva.
Cada época tem os seus modos de leitura. Na Antiguidade, lia-se em voz alta e estranhava-se a leitura silenciosa. Nos tempos do Iluminismo, censurava-se a leitura criativa e elogiava-se a leitura passiva. No século XVIII, não se via com bons olhos que as mulheres lessem em privado, para que não escapassem pela leitura às restrições moralistas da época. Nos nossos tempos, todos os modos de leitura são permitidos e cada um pratica os que quer. Por outro lado, observamos, com ânimo, que alguns dos jovens que comunicam superficialmente entre amigos, conseguem, quando querem, embrenhar-se na mais densa e apaixonada das leituras.
Paradoxalmente, apesar da decadência do cultivo da leitura como atividade nobre e continuada, nunca se leu tanto como hoje, graças a três novas formas de leitura: as leituras fragmentadas, as leituras hipertextuais e as leituras digitais.
As mensagens curtas integram-se plenamente numa época onde o esforço de pensar se tornou numa imensa maçada. Correspondem em larga medida à faceta superficial e fútil das relações sociais e a muitas das transações simplificadas a que assistimos nas redes sociais. Em contrapartida, a poderosa orgânica das ligações Web dá hoje acesso a grande parte do saber universal. Para aceder a esse saber, o leitor dos nossos dias tem de ir muito para além da leitura textual tradicional. Em particular, tem de saber construir e dominar com destreza os sistemas de pesquisa, curadoria, captação e agregação de informação em que assenta o acesso aos inesgotáveis repositórios do saber online. Por outras palavras, o leitor dos nossos dias tem de aprender a ler, não apenas para as práticas de leitura do passado, que, mesmo assim, domina mal, mas também para as práticas de leitura online do presente e do futuro, que parece desconhecer por completo.
O mesmo acontece com as leituras digitais. Um documento digital não é a simples versão digital de um texto em papel. É um ecossistema. Pode ser pesquisado pelo conteúdo, sublinhado, destacado a cores, anotado, rabiscado. Permite que durante a sua leitura se consultem diretamente dicionários, enciclopédias e outros documentos de referência. Pode ser duplicado, lido e anotado em várias versões, com registo de distintas anotações em cada caso. Permite copiar partes do texto para ambientes onde queiramos trabalhá-las. Pode ser posicionado lado-a-lado com documentos com os quais queiramos confrontá-lo. Pode ser recordado em minutos, anos após a última leitura, graças às anotações que nele deixámos. Pode ser lido às escuras e ajustado em vários dos seus parâmetros, como o tamanho das letras. Por outro lado, várias aplicações de leitura de documentos digitais, como as do Kindle, constroem automaticamente novos textos a partir das anotações, facultando novas formas de trabalho. Nos nossos dias, um universitário que não se movimente com desenvoltura nestas práticas dificilmente poderá afirmar que sabe ler. Pelo menos, não saberá ler documentos digitais.
A decadência da leitura profunda gerou a decadência da reflexão crítica. O cidadão dos nossos dias não domina o pensamento crítico porque não aprendeu a construí-lo, autonomamente, pela leitura. Confinado que está às limitações da sua vivência pessoal, fechado às leituras reais e imaginárias que iriam abri-lo para o mundo, não reconhece a imensa diversidade desse mundo nem a complexidade dos sentimentos humanos, que apenas vislumbra pelos padrões da sua limitada convivência do dia-a-dia. E como não aprendeu, pela leitura, a exprimir por palavras a riqueza e diversidade do mundo em que vive, não consegue sequer refletir sobre elas, visto que não há pensamento sem palavras que o sustentem. A sua incapacidade para ler criticamente o texto e o contexto fecha os seus horizontes e torna-o dependente, manipulável e vulnerável a todas as falsas verdades.
Por todas estas razões, o fator mais crítico da formação universitária dos nossos dias é dominar a Arte da Leitura, nas suas três vertentes. Por um lado, a leitura profunda, ativa e continuada, que herdámos dos nossos antepassados, mas que estamos a desaprender, por falta de prática. Por outro lado, a leitura do espaço online, que inclui hábitos de pesquisa, curadoria, captação e agregação de informação e gestão de referências. Um universitário dos nossos dias, perante o computador que o liga à rede, é como um piloto aos comandos do seu avião: com um simples olhar ou movimento de mão tem acesso a uma imensidade de instrumentos que facilitam e enriquecem a sua tarefa. Finalmente, a arte da leitura digital: ler um documento digital como se fosse em papel, queixando-se de que a sua leitura é inferior, é não reconhecer as virtudes de nenhuma das leituras. É como comparar uma viagem em carruagem de cavalo com uma viagem de automóvel e concluir que a primeira é melhor porque não gasta gasolina. Só aprendendo a ler documentos digitais se poderá tirar partido das suas riquíssimas virtudes.
NOTA – Este texto foi originalmente publicado no Jornal MIL FOLHAS, da Biblioteca da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em fevereiro de 2021 (https://www.uc.pt/site/assets/files/623129/mil_folhas_n2.pdf).