A Avaliação dos Professores Universitários

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A complexidade da avaliação de um professor universitário, tal como a da avaliação de um cientista, artista ou filósofo, torna inadequada qualquer apreciação meramente fundada sobre julgamentos de facto. Exige, acima de tudo, julgamentos de valor. Ludwig Wittgenstein, que publicou em vida um único livro, com apenas uma centena de páginas, é considerado por muitos especialistas como tendo um valor muito superior a Bertrand Russell, prémio Nobel, que publicou mais de três dezenas de extensas obras. Isto apesar de outros especialistas, com idêntica legitimidade, defenderem o contrário.

A avaliação de um professor universitário é um processo complexo, interpretativo, hermenêutico, subjetivo, cuja valia e rigor resultam de ser conduzido por um júri de vários professores cujas experiências e tradições académicas e pedagógicas são ricas, extensas e variadas. É um processo onde, como esclarecia Gadamer em Truth and Method 1, a compreensão segue um percurso de interpretação mediado por uma tradição que é distinta para cada uma das partes que julga.

Quando a avaliação decorre no contexto de um concurso, a importância do processo interpretativo é reforçada pelo carácter teleológico do provimento. Não se nomeia um professor apenas como prémio pelo seu desempenho passado (o que corresponderia à lógica, e às consequências, do Princípio de Peter), mas também por ser, numa perspectiva interpretativa, o mais adequado para o lugar. A fundamentação não pode, assim, assentar apenas em causas eficientes. Assenta também em causas finais. Não se nomeia apenas porque, mas também para, e isso obriga a cuidados interpretativos adicionais.

Favoreço, como muitos colegas em todo o mundo, o modelo proposto por Boyer2, que aponta quatro funções parcialmente sobrepostas como indispensáveis à avaliação de um professor universitário: os magistérios da descoberta, da integração, da aplicação e do ensino (ver figura). O magistério da descoberta é o que reflete a atividade de investigação. É entendido como a contribuição do professor, não só para o avanço universal do conhecimento, pela descoberta de novos saberes, mas também para o clima intelectual da universidade. São importantes, neste sentido, não apenas os resultados (artigos publicados), mas também a mobilização e entusiasmo que o professor é capaz de gerar em seu redor.

O magistério da descoberta resulta de uma mutação relativamente recente na tradição da Universidade como instituição milenária. De facto, só a partir das propostas de Wilhelm von Homboldt, fundador da Universidade de Berlim, no século XIX, a missão da Universidade começaria a ser entendida como centrada na produção de conhecimentos novos, dando destaque à investigação científica. Aliás, a propagação desse entendimento para fora da realidade universitária alemã só começaria a surgir nas universidades dos países mais desenvolvidos já no século XX. Esta mutação, de há apenas um século, tem vindo a prolongar-se, por sua vez, para novas mutações, agora assentes em modos de produção de conhecimento muito distintos dos que von Humboldt preconizava.

A investigação Humboldtiana, ou investigação de modo 1, agora tida por tradicional, era realizada quase exclusivamente nas universidades, situava-se em ramos disciplinares estanques e produzia saberes que precediam a sua aplicação prática. As novas formas de investigação, ou investigação de modo 2, produzem saberes de ponta, não especificamente nas universidades, mas no contexto da aplicação industrial, organizacional ou social, segundo lógicas interdisciplinares, com agendas de investigação determinadas pelos interesses partilhados de comunidades alargadas. Comunidades alargadas que transcendem as universidades para passarem a incluir empresas, outras organizações e governos3. Hoje, as duas lógicas prosseguem caminhos paralelos, igualmente legítimos, embora se observe uma forte deslocação dos financiamentos da primeira para a segunda.

É nesta conjuntura que a inovação tem vindo a afastar-se do modelo linear tradicional, que colocava a descoberta a montante do processo de produção científica, nas universidades, para surgir no seio de interações complexas e simultâneas dos múltiplos atores dos processos de inovação – universidades, indústrias, governos, organizações não governamentais4 – perante problemas concretos aos quais, colectivamente, pretendem dar solução.

É nesse sentido que várias universidades, das mais avançadas, reconhecendo que a produção de novos saberes surge na confrontação com desafios socioeconómicos concretos, começam a deslocar os seus objectivos de inovação científica da periferia das suas atividades para o próprio centro dos seus sistemas de valores5. Este fenómeno tem consequências sobre as opções que as universidades tomam em matéria de investigação científica, sobre as expectativas quanto ao desenvolvimento dos seus professores de carreira e sobre os julgamentos que fazem quanto aos projectos de investigação que esses professores integram e dirigem.

O magistério da integração acentua a capacidade do professor para dar sentido aos saberes isolados, colocando-os em perspectiva, estabelecendo conexões entre saberes e colocando as especialidades em contextos mais alargados. Assume, assim, uma função interdisciplinar, interpretativa e integrativa: interdisciplinar, porque dirigida para a construção e exploração de conexões entre saberes; interpretativa porque apostada na compreensão dessas conexões no contexto de padrões intelectuais enquadradores; integrativa, porque entendida como capaz de fazer convergir todos esses elementos em saberes e contextos coerentes e globais. É nesse sentido que se espera que o professor de carreira demonstre uma espessura intelectual e cultural que dê contexto, profundidade e sustentação à sua atividade científica, evitando transformar-se naquilo que Ortega y Gasset, na sua Missão da Universidade, descrevia como “um bárbaro que sabe muito de (apenas) uma coisa”6.

O magistério da aplicação reflete o que, partindo da tradição universitária alemã dos fins do século XIX e início do século XX, passou a designar-se por Zeitgeist, o “espírito do tempo”, os valores intelectuais e éticos que caracterizam uma época. No essencial, significa que a ação do professor universitário, pela ciência que constrói e pela aprendizagem que proporciona, deve servir os interesses da comunidade em que se inscreve. Esse sentido de serviço é infelizmente relegado para segundo plano por alguns universitários mais apostados em progredir rapidamente na carreira do que em reconhecer as obrigações que os vinculam, como cientistas e pedagogos, à comunidade a que pertencem.

O magistério do ensino pressupõe que o saber do professor só faz sentido quando se torna compreendido pelos outros. Por isso, o professor não pode encerrar-se no ciclo fechado da convivência científica com os seus pares, reservando para os alunos meras “transferências” de saberes, apresentadas mecanicamente em aulas teóricas e exercitadas mecanicamente em aulas práticas. Sabendo-se que existe uma distância gigantesca entre o que um professor ensina e o que o aluno aprende, o professor não pode deixar de tentar minimizar essa distância. Para que o magistério do ensino tenha sucesso, o professor tem de assegurar, pelo estudo dos processos de aprendizagem, pela reflexão e pela prática o permanente reforço da sua capacidade para ensinar.

É na convergência harmoniosa destas quatro dimensões, parcialmente coincidentes, que se reconhece a qualidade de um professor. Por isso a carreira de professor é tão exigente. Não é fácil ser um bom investigador, cujos saberes se projetam para o mundo, mas ser um bom professor obriga, não apenas a ser bom investigador, mas a ser muito mais do que isso.

Se o debate deste tema vier a revelar-se proveitoso, procurarei numa posterior reflexão trazer para a realidade da prática os princípios que acima enunciei, comentando, entre outros aspetos, o absurdo das grelhas usadas para avaliar professores universitários, as deficiências da articulação da carreira com o modelo de Bolonha e os desafios que uma sociedade cada vez mais conectada coloca ao exercício da carreira universitária.

  1. Gadamer, H.-G. (1975). Truth and Method. Sheed & Ward, Ltd.
  2. Boyer, E. L. (1990). Scholarship Reconsidered: Priorities of the Professoriate. The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, Jossey-Bass Publishers.
  3. Gibbons, M., Limoges, C., Nowotny, H., Schwartzman, S., Scott, P., Trow, M. (1994). The New Production of Knowledge: The Dynamics of Science and Research in Contemporary Societies, Sage Publications.
  4. Leydesdorff, L. and Etzkowitz, H. (1998). The Triple Helix as a Model for Innovation Studies, Science & Public Policy, vol. 25(3), pp. 195-203.
  5. Matkin, G.W. (1990). Technology Transfer and the University. MacMillan.
  6. Ortega e Gasset, J. (1946). Missão da Universidade (tradução portuguesa de Sant’anna Dionísio), Seara Nova
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