Melhoria das Aprendizagens de Matemática. Um Contributo para a Discussão Pública do Relatório Produzido pelo Grupo de Trabalho de Matemática

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Em fins de Dezembro de 2018, a Secretaria de Estado da Educação nomeou um grupo de trabalho para “proceder à análise do fenómeno do insucesso e à elaboração de um conjunto de recomendações relativas ao ensino, aprendizagem e avaliação da disciplina de Matemática”. O documento resultante, datado de 30 de junho de 2019, esteve em consulta pública até 31 de outubro de 2019. O preâmbulo do despacho, a constituição da comissão e o relatório produzido sugerem que algumas das partes interessadas relevantes não foram auscultadas, com destaque para o sector das engenharias, cuja dependência relativamente às competências matemáticas dos estudantes é muito elevada. Se tivermos em conta que a falta de engenheiros, um problema grave do desenvolvimento tecnológico e económico do país, é motivada em larga medida pela falta de candidatos com preparação matemática adequada, afigura-se de importância vital superar essa lacuna. O presente documento procura contribuir nesse sentido, divulgando as reflexões de alguém que dedicou várias décadas ao estudo da história e da filosofia da engenharia e à experimentação e reflexão sobre a educação em engenharia. 

Matemática formal versus matemática instrumental

Há duas variantes da matemática muito distintas, quase opostas, que se completam e constroem mutuamente. A primeira é a matemática formal e abstrata que se ensina nas escolas. A segunda é a matemática instrumental e aplicada com a qual se constrói o mundo. A primeira basta-se a si própria e é de uma grande beleza. A segunda existe para servir as outras áreas do saber e é de uma eficácia fulminante. A primeira é o domínio de excelência dos matemáticos que cultivam a matemática pela matemática. A segunda é um corpo de competências cada vez mais necessário em todos as atividades humanas, e já não apenas nas ciências duras. A primeira traduz-se por disciplinas de matemática. A segunda funda-se nas disciplinas de matemática mas evolui a partir delas, pela prática interdisciplinar, para a construção de competências matemáticas

O interesse pelas competências como complementos dos saberes disciplinares acentuou-se a partir da publicação do Relatório Faure, da UNESCO (1972), que augurava “um novo ser humano para um novo mundo” e acentuava a importância de desenvolver nos jovens competências que enquadrassem os saberes cognitivos que a escola lhes oferecia. O crescimento da complexidade e incerteza do mundo em que vivemos, motivado em larga medida pelas tecnologias, deu razão a essa linha de intervenção e levou a que entidades com destacadas responsabilidades na educação a nível mundial, como a UNESCO, OCDE, Fórum Económico Mundial, Comissão Europeia, Partnership for 21st Century Skills, insistam hoje enfaticamente na educação, não apenas para os saberes, mas também para as competências. O próprio Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, do nosso Ministério da Educação, se inscreve nesse movimento.

Matemática das disciplinas versus matemática das competências

Os organismos internacionais que hoje reclamam a formação de grande quantidade de profissionais competentes em matemática não reclamam apenas conhecimentos disciplinares de matemática — reclamam, sobretudo, competências matemáticas. Reclamam-nas porque as matemáticas estão hoje na base de tudo quanto são algoritmos, e o mundo é hoje gerido por algoritmos, mais do que por pessoas. Reclamam-nas porque as matemáticas estão hoje na base da análise maciça de dados, e grande parte das grandes decisões do presente resultam da análise maciça de dados. Reclamam-nas porque as competências matemáticas, na sua natureza transversal de competências, se fundem e confundem com as de computação. Reclamam-nas porque o casamento entre matemática e computação é o instrumento mais poderoso que a Humanidade alguma vez inventou. Reclamam-nas porque essa poderosa combinação invade hoje todos os setores de atividade, incluindo as humanidades (humanidades digitais, jornalismo digital, media digitais).

Quando os organismos internacionais falam de STEM (Science, Technology, Engineering, and Mathematics), não falam, na maior parte dos casos, de um agregado de quatro áreas disjuntas, destinadas a ser ensinadas e aprendidas separadamente. Falam de uma só área (STEM) que combina transversalmente os saberes das quatro áreas componentes. Falam de competências transversais de STEM, que se interpenetram e reforçam mutuamente. O grande desafio do STEM, quando encarado nesta perspetiva, está na identificação de abordagens curriculares e pedagógicas novas, interdisciplinares, capazes de explorar de forma inteligente esta interpenetração. Uma vez consolidadas estas abordagens, uma parte significativa da aprendizagem da matemática, que hoje se exercita na mera aplicação da matemática à matemática, passará a poder ser acionada e consolidada em aplicações das ciências, tecnologias e engenharia. Poderemos, então, começar a falar de competências matemáticas.

Infelizmente, das duas matemáticas que aqui distingo – abstrata e instrumental – só a primeira é ensinada nas escolas. Poder-se-á dizer que o seu ensino é suportado com exercícios que facilitam a sua compreensão, mas a ausência de práticas multidisciplinares integradoras que promovam a sua apropriação cultural em contextos multidisciplinares tornam-na limitada e ineficaz na construção de competências matemáticas. Tal como a água, cujas propriedades líquidas não existem nos seus gases componentes, hidrogénio e oxigénio, e apenas emergem da combinação das componentes em condições específicas, também as competências matemáticas só emergem da combinação da matemática com outras áreas na resolução de problemas em contextos complexos, interdisciplinares e, cada vez mais, de natureza social. A consolidação e amadurecimento das competências matemáticas não resultam apenas da compreensão e memorização de conhecimentos, mas também das intensas transformações neuronais que emergem do envolvimento em vivências práticas complexas e interdisciplinares.

Matemática da análise versus matemática do projeto

Quando perguntaram a Theodore von Kármán, matemático, físico e engenheiro aeronáutico, responsável por muitas das inovações aeronáuticas dos anos cinquenta, que diferenças existiam entre ciências e engenharias, ele respondeu: “as ciências explicam o que existe, as engenharias criam o que nunca existiu”. Esta distinção tem vindo a esbater-se ao longo dos anos, à medida que as práticas das ciências se aproximam das das engenharias. O próprio conceito de “projeto”, que dantes apenas fazia sentido nas engenharias, é hoje usado nas ciências e em todos os domínios do saber. Apesar dessa aproximação, a distinção entre percursos epistemológicos de explicação e de construção, de análise e de síntese, mantém-se imutável. A matemática que se ensina nas nossas escolas é a matemática da análise. A síntese, o projeto, a construção do mundo recorrendo à matemática estão, infelizmente, afastadas das nossas escolas!  

Embora os conceitos de estilos de aprendizagem e inteligências múltiplas suscitem justificadas reservas, é incontestável que as preferências cognitivas e culturais de cada um determinam motivações e percursos de aprendizagem distintos. Há quem aprenda predominantemente pela via analítica e em torno de abstrações, mas há quem, pelo contrário, necessite de recorrer à intuição e a prática para aprender. Esta distinção salta aos olhos de quem ensina conjuntamente futuros matemáticos e engenheiros. A verdade é que nas sociedades contextuais em que vivemos a capacidade de aprendizagem analítica está em decadência. Basta ver uma criança usar um dispositivo tecnológico para percebermos que não está a seguir nenhum percurso analítico. Em boa verdade, o próprio sincretismo da aprendizagem humana, que leva uma criança de três anos a falar com grande correção gramatical sem nunca ter dominado os percursos analíticos da gramática, deveria alertar-nos para os riscos de insistirmos em que uma criança aprenda unicamente pela via analítica. 

Sem dúvida que é essencial ensiná-la a pensar analiticamente e de forma abstrata, sobretudo porque cada vez sabe menos fazê-lo. A matemática, pelo seu caráter eminentemente analítico e abstrato, pode desempenhar um papel chave nessa aprendizagem. No entanto, quando se opta por complicar o acesso à matemática a quem tem dificuldade em seguir percursos analíticos e abstratos (ver exemplo), perdem-se para o insucesso milhares de jovens que teriam aprendido a matemática com facilidade e prazer se tivessem seguido vias mais pragmáticas. Quando, e só quando, esses jovens tivessem atingido níveis de desenvoltura e confiança mais elevados, poderiam, então, se fosse caso disso, progredir para formulações mais abstratas. Há cem anos, a aprendizagem do ski de neve recorria aos skis comuns, com taxas de insucesso muito elevadas. Um dia, experimentou-se iniciar a aprendizagem com skis mais curtos, antes de progredir para skis maiores, e o sucesso foi enorme. Em poucos anos, o ski deixou de ser reservado a quem tivesse nascido para esquiar à primeira tentativa e ficou ao alcance de toda a gente. Hoje em dia, há campeões de ski que nunca se teriam equilibrado em cima de um par de skis se não tivessem aprendido com skis curtos. Que bom que era que todos os jovens pudessem, como esses esquiadores, aprender matemática com prazer e sem se sentirem derrotados pelas suas dificuldades iniciais!

Sugestões

No essencial, procurei realçar a importância de ter em conta que a aprendizagem da matemática no ensino obrigatório não se destina a produzir apenas futuros matemáticos. Destina-se, acima de tudo, a produzir estudantes capazes de prosseguirem estudos nas múltiplas áreas onde as matemáticas são usadas, não tanto na sua vertente abstrata e formal, mas sobretudo como instrumentos essenciais para a formulação e resolução de problemas. Sugeri, por isso, a necessidade de imprimir à aprendizagem da matemática no ensino obrigatório uma dinâmica de transição do abstrato para o instrumental, das disciplinas para as competências, das culturas do formalismo para as culturas do projeto. 

Para levar a bom termo esse objetivo, afiguram-se relevantes algumas sugestões:

  • No curto prazo, sugiro um esforço de pragmatização da aprendizagem da matemática através da reforma das didáticas e das pedagogias e do simultâneo ajustamento dos programas. Nada obsta a que, para estimular o gosto pela abstração, se estabeleçam objetivos pedagógicos opcionais adicionais.
  • No médio prazo, sugiro um alargamento da reflexão e das práticas do ensino da matemática no sentido de as exercitar em torno de projetos que sejam, não do âmbito da matemática, mas da combinação da matemática com disciplinas afins – ciências, tecnologias, engenharias. Numa primeira fase, essa transição poderia acontecer nos tempos letivos dedicados à autonomia e flexibilidade curricular. Seria ideal constituir um repositório crescente de pistas para os professores desenvolverem com gosto nos seus projetos. Esse repositório poderia ser desenvolvido, pelo menos parcialmente, no âmbito de trabalhos de mestrado e doutoramento. 
  • Ao nível da formação inicial e contínua dos professores de matemática, sugiro o lançamento de programas de formação orientados para o desenvolvimento de uma cultura de projeto que contemple a criação, realização e gestão de projetos interdisciplinares e abertos.
  • No longo prazo, sugiro o lançamento de um projeto de investigação nacional orientado para a definição de uma área curricular de STEM capaz de articular as aprendizagens de ciências, tecnologias, engenharia e matemática. Idealmente, um tal projeto assentaria em parcerias duradouras entre unidades de investigação e comunidades escolares e seria conduzido no âmbito de projetos de investigação realizados por equipas mistas de investigadores e professores das escolas. Esses projetos ofereceriam alternativas contextuais à formação de professores (hoje confinadas quase exclusivamente a sessões em sala), proporcionando oportunidades para mestrados e doutoramentos “no terreno” e contextos autênticos para a progressão dos professores numa perspetiva de carreira.

Créditos – O exemplo reproduzido na figura é da autoria do Prof. Vítor Duarte Teodoro, da Universidade Nova de Lisboa.

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